“Ser de vila e negra é enfrentar um duplo preconceito”

Conheça Nielly Vitória,uma das quatro correspondentes de periferia do Plural

Quando o Plural realizou sua primeira oficina de jornalismo para jovens de periferia, uma das tarefas era ler o material que a galera produziu. A maior parte escreveu reportagens curtas sobre suas regiões. Uma única menina se arriscou a fazer um texto de opinião, contando sobre sua vida e sobre os problemas que o preconceito trazia para uma garota negra que acabava de fazer 18 anos. “A menina do Morro da Formiga” pra mim virou um clássico, e desde lá adoro ler tudo que a Nielly Vitória escreve.

Ela me mostra coisas sobre a periferia em seus textos que eu não conheceria de outro jeito. E o repertório de músicas e letras que ela tem é tão diferente do meu que pra mim é sempre uma surpresa descobrir as canções que ela cita quando escreve. Neste texto, eu entrevisto a Nielly para saber mais sobre essa nossa correspondente da periferia.

Teus textos em geral são muito marcados pela questão racial. Como você foi se descobrindo como negra? Porque acho que a gente se descobre negro quando vê que é vítima de preconceito, não?
Foi quando eu percebi que na escola eu era diferente, as meninas sempre iam de cabelo solto, e parecia tão fácil de arrumar o cabelo delas mas o meu não, era mais complicado e eu ia sempre de cabelo preso por ser mais prático. Eu fui crescendo tentado ser encaixada num molde que não me cabia. Conforme fui crescendo entendia mais sobre quem eu era, que minha tonalidade de pele era um problema pra algumas pessoas, mas eu sabia que não tinha feito nada de errado. Eu comecei a ter medo de perder pessoas pelo tratamento que eles recebiam, percebi que não podia andar de qualquer forma em muitos lugares, senti que existiam dores no dia dia com as pequenas agressões que só eu sentia.

Como você começou a se ver nesse papel de fazer crítica social, de mostrar os problemas do racismo?
Quando eu percebi que muitas coisas me machucavam e eu fingia que não, numa roda de amigos ou no meu círculo mesmo, tendo que fingir que não me magoava com comentários ou ter que ser de uma forma que pra mim não valia. Eu tinhas muitas dúvidas, ficava com raiva e triste e não sabia por que, e estar com pessoas negras me mostrou que não era coisa da minha cabeça, que é preciso lidar com os preconceitos. Preconceitos por ser de vila, por ser negra. E sendo os dois eu me coloquei no lugar de lidar com isso de uma forma pra não ter que fingir estar tudo bem. 

Você parece ter uma relação muito próxima com a música. Qual o papel que o rap e a música negra tiveram nessa tua descoberta?
Eu nunca fui de falar muito, principalmente sobre o que estava sentindo. Meus primos me apresentaram o rap, que faziam sentido pra vida deles e eu segui os passos. Fui sem perceber ouvindo letras do Racionais e ficava sentida. Lembro de como ouvi “Jesus chorou” do Racionais e ela fixou na minha cabeça de uma forma… O rap a música negra me salvam todos os dias, sem dúvidas. Eu me sinto viva enquanto escuto os meus falarem sobre a vivência deles e sobre onde eles chegaram. A música negra periférica é um suporte, uma segurança a mais pra saber que minhas ideias fazem sentido e que eu devo continuar sendo eu mesma, fora do padrão deles. 

Onde você nasceu e cresceu? Como foi a tua infância?
Nasci em Curitiba, fui criada no Tanguá, Almirante Tamandaré, numa área que chamam Morro da Formiga. Tive uma boa infância, minha mãe me deu tudo de melhor nas condições que ela podia. E tenho muitas lembranças dela costurando no ateliê atrás de casa e eu brincando com os tecidos ou em volta dela com meu irmão. Mesmo sendo criança chegou um momento que senti que não deveria ser tão inocente achando que as coisas vinham fácil e aprendi coisas até cedo demais, mas que hoje eu entendo mais o porquê. 

Você é garota propaganda de uma empresa de educação. Conta como foi isso?
É uma instituição que eu sempre tive contato e um carinho, me desenvolvi bastante lá dentro principalmente profissionalmente, fiz voluntariado e consegui trabalho como menor aprendiz por lá, foi um lugar que eu me senti bem de estar e onde eu podia ser eu mesma, e nisso surgiu de eu ser a garota propaganda da Elo, foi uma experiência bem interessante para quem se considera tímida. 

Como foi tua relação com a tua família nessa tua luta, teu ativismo?
Pra minha família eu fui a que pensava diferente, questionava mais e era contra e a favor de coisas que eram fora dos princípios deles. Eles ficavam preocupados e escutei muito que o racismo em Curitiba era camuflado, que só quem passava sentia mas nunca entendi por que não podia questionar isso. Só a gente sente essa dores no dia a dia. Eu aprendi a lidar com essas situações diferentes, me vi num lugar onde eu quis e corri atrás para desenvolver e ver sobre minha ancestralidade em mim e nela encontrar forças. 

Quais são teus planos hoje?
Hoje meu plano é me fortalecer pra fortalecer os meus. Sendo uma pessoa jovem e abrangendo mais meus horizontes e me reconhecendo em lugares e pessoas negras, eu sei que posso conquistar tudo aquilo que eu desejo, sem negar minha ancestralidade. 

O que mais precisaria mudar em Curitiba e nas periferias hoje, na tua opinião?
Acho que levar mais a serio as causas, as pautas que as pessoas gostam tanto de falar que “ajudam”. Vejo gente fazer barulho, ir atrás de respostas, mas sinto que é fácil perder o foco. Ir atrás de verdade da melhoria exige comprometimento.

Sobre o/a autor/a

1 comentário em ““Ser de vila e negra é enfrentar um duplo preconceito””

  1. João Victor de Mello

    Conheci a Nielly Vitória numa oficina de Marketing Digital ministrada na Faraoh Records. Nielly é uma mulher articulada, conhece vários assuntos e consegue se aprofundar em cada um deles. Ela tem várias ideias na cabeça e espírito jovem, com capacidade de atuar com efetividade onde quer que esteja, é a capacidade de fazer acontecer ou como chamam no mundo corporativo: Pró atividade.

    Como toda mulher preta e periférica, a Nielly é hábil na Sevirologia (Suyane Ynaya). Tem um enorme potencial, capaz de deixar qualquer homem branco intimidado com tamanho talento.
    E é por isso que as oportunidades são escassas.

    Assim como Dandara, Tereza de Benguela, Luísa Mahin, Marielle Franco, Telma Mello e Carol Dartora. Nielly Vitória, mulher preta talentosa e que está abrindo caminhos com sua trajetória e que abrirá caminhos para outras pessoas pretas.

    Afinal, como diz Angela Davis “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”.

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