Sem um centavo, UFPR e UTFPR vivem “drama sem precedentes”

Bolsistas e terceirizados, que dependem de pagamento mensal, são os mais afetados pelo corte abrupto de verbas do governo de Jair Bolsonaro

Na reta final do ano, a crise nas contas do governo Jair Bolsonaro (PL) irrompeu o caos no ensino superior público. O caixa zerado por um novo bloqueio orçamentário – o terceiro de 2022 – fizeram UFPR e UTFPR, as duas maiores universidades federais do estado, admitirem não ter como pagar contas dos serviços mínimos para manter os campi de portões abertos, um comunicado que ameaça de forma inédita a permanência de alunos de maior vulnerabilidade. Estendidos ao principal órgão de desenvolvimento e financiamento da ciência no país, a Capes, os cortes também asfixiam pesquisas em curso nas instituições.

A balbúrdia resulta de um bloqueio de R$ 1,4 bilhão nos recursos do Ministério da Educação (MEC) determinado pelo governo federal na quinta-feira passada (1) – sendo R$ 344 milhões nas verbas de todas as universidades federais. O cerco às cifras já havia sido imposto no dia 28 de novembro, em meio a jogo do Brasil no Mundial do Catar. Dois dias depois, o MEC garantiu uma liberação que não ocorreu, e agora universidades federais de todo o Brasil amargam uma situação bastante dramática.

A UFPR fechará o ano com R$ 10,5 milhões no vermelho. Esse é o valor retirado da instituição pela decisão recente de Bolsonaro – todo ele já estava empenhado, o que agora significa uma dívida sem dinheiro para quitar. Somado ao bloqueio de junho, a maior universidade federal do Paraná deve fechar 2022 com R$ 20,76 milhões a menos do que o orçamento de R$ 145,5 milhões inicialmente previsto para o período, já menor do que o de 2021.

A UTFPR calcula redução de R$ 20 milhões no montante designado pela lei orçamentária. Os cortes reduziram de R$ 132,1 milhões para R$ 112 milhões as verbas da universidade. “Não haverá conformidade com tal ato e a Reitoria da UTFPR está fazendo tudo o que é possível e necessário para que recuperemos nossos recursos e possamos cumprir nossas obrigações”, afirmou a reitoria da instituição em nota divulgada nesta segunda-feira (5).

Há um movimento de pressão em curso em Brasília, onde reitores de dezenas de UFs estão reunidos para buscar uma solução, inclusive com membros do futuro governo. A equipe de transição do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva teme um apagão ainda maior no MEC e já indicou ser necessário pelo R$ 480 milhões para retomar as atividades normais da pasta da Educação.

O reitor da UFPR, Ricardo Marcelo Fonseca, que também preside a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), classificou a situação como um drama sem precedentes.

Embora o bloqueio de todo o recurso restante das instituições impacte de imediato o pagamento de despesas ordinárias como luz, água e eventuais contratos, a maior preocupação dos gestores é com a impossibilidade de depositar os valores das bolsas bloqueados pela medida.

“Uma parte mais dramática, pelos números, é o contingente daqueles estudantes com alta vulnerabilidade socioeconômica que dependem de bolsas assistenciais. Eu estou falando de estudantes com renda per capita abaixo de um salário-mínimo e meio e que as universidades agora não terão como rodar o pagamento com essa retirada”, afirma. “É um colapso orçamentário que acontece nas instituições, mas que agora resulta em drama humano para uma série de pessoas que não têm até meios de subsistência”.

A Andifes estima que 500 mil estudantes hoje dependam de recursos assistenciais bancados pelas próprias universidades para se manter em sala de aula. Na UFPR, são 4 mil alunos atendidos pelo programa criado para ajudar matriculados em situação de vulnerabilidade socioeconômica e mais 77 quilombolas e indígenas que dependem diretamente de repasses da União. E a universidade garantiu, em nota publicada nesta quarta (7), não ter condições de pagar os auxílios se mantida a medida do governo federal. “Ressaltamos que, infelizmente, nenhum estudante beneficiário dos auxílios citados acima recebeu o valor no mês de dezembro”, diz o esclarecimento.

Nem permanência …

“Nas últimas semanas que antecedem o recesso, em período de provas e acontece isso. Eu não tenho perspectiva nenhuma e estou totalmente desesperada”, relatou ao Plural Keu Santos, estudante do 1º ano Ciências Econômicas da Universidade Federal do Paraná.

Da Bahia, Santos se mudou para Curitiba pelo sonho de um diploma e, sem condições de se manter com a ajuda da família, conseguiu comprovar a necessidade de ser atendida pelo programa de assistência da UFPR. Por isso, gere o dinheiro da bolsa contado às minúcias. Sem ele, não tem outra condição de permanência.

Nem ela nem quase todas as 150 colegas com quem compartilha os espaços da Casa da Estudante Universitária de Curitiba (CEUC), a qual preside. Abrigada em um prédio da UFPR, a moradia tem um custeio mínimo rateado entre o grupo, e o bloqueio nos pagamentos da bolsa desestabiliza as contas da casa.

“A gente está falando de pessoas cuja viabilidade econômica é quase nula. Vínhamos acompanhando o movimento de cortes nas universidades, mas até o momento não se falava nessa possibilidade de ficarmos realmente ficar sem bolsa. Aí é que entra o desespero”, diz. “Como todo mundo aqui vem de fora, é comum no final do ano os estudantes voltarem para ver suas famílias, mas sem as bolsas até nisso vai interferir”.

… nem pesquisa

A mesma angústia tem afetado pesquisadores e residentes de medicina pagos pelas Capes. O órgão financia hoje cerca de 90 mil bolsistas em mestrado ou doutorado e 14 mil em residência médica em todo o Brasil. Juntando outras modalidades, chega-se ao total de 200 mil bolsas, cujos depósitos deveriam ter ocorrido até esta quarta-feira (7).

Contudo, em comunicado publicado na véspera, a instituição afirmou ter ficado sem condições de desembolsar “todo e qualquer valor – ainda que previamente empenhado – o que a impedirá de honrar os compromissos por ela assumidos”.

Apesar de o calote minguar ainda mais a verba do órgão e aumentar a asfixia do sistema científico brasileiro, cortes anteriores nunca haviam impedido o pagamento das bolsas. O fato de o pior cenário ter se concretizado caiu como uma bomba entre os estudantes, que até o início da semana ainda contavam com o dinheiro na conta.

“Foi a primeira vez que a gente não recebeu um salário”, relata Lara Cezar, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) da UFPR. De Santa Rosa, no Rio Grande do Sul, Cezar mora em Curitiba de aluguel – a dívida com moradia consome boa parte da bolsa de R$ 2,2 mil financiada pela Capes, sem reajuste há nove anos. Mestrandos ganham R$ 1,5 mil.

Para estruturar dissertações e teses assistidas pelo órgão federal, os estudantes não podem ter qualquer vínculo empregatício, apesar de um limite de horas para lecionar seja a exceção. Por não serem considerados pela legislação trabalhista, também não recebem 13º salário nem têm férias legalmente estipuladas, mas são submetidos a avaliações periódicas e podem perder a bolsa se não atingirem níveis mínimos de rendimento.

“Nós bolsistas da Capes vivemos nesse limbo. A gente ainda é considerado estudante, a bolsa é considerada um auxílio, mas na verdade é nosso salário porque a gente tem dedicação exclusiva e precisa entregar resultados”, pondera Cezar. “O que fazemos é um trabalho. Somos pesquisadores e pesquisa é a nossa profissão. Para entrar no doutorado é uma grande dedicação, você não entra do nada. E se manter nele também exige muito porque é um sistema produtivista e se você não entrega resultado nem se mantém na pesquisa”.

Rafael Marques, doutorando no mesmo programa, também teme pelo impacto do corte nas verbas na sua rotina acadêmica. De Minas Gerais, tem dedicação exclusiva no PPGCOM, que em 2022 saltou de 4 para 5 na avaliação da Capes.

“A bolsa é o que me permite estar aqui. Eu poderia sobreviver sem ela se arrumasse emprego informal e passasse a madrugada inteira trabalhando em algum bar, mas com certeza não iria me dedicar à minha pesquisa de maneira tão eficiente”, diz.

A Associação de Pós-Graduandos da UFPR (APG) marcou um ato contra os bloqueios no MEC para esta quinta-feira (8), na Praça Santos Andrade. O protesto faz parte de uma mobilização nacional organizada por mestrandos e doutorandos de todo o país. O receio é de um impacto até mais robusto, com a desmotivação de estudantes e o enfraquecimento ainda maior do tecido da produção científica nacional.

“Ninguém está em um mestrado ou doutorado por acaso. É uma escolha de carreira, e, assim como toda carreira, exige sacrifícios. E quando acontece isso, pessoas que teriam um grande potencial para estar produzindo conhecimento olham e podem ser perguntar se realmente vale a pena passar por isso. Porque, realmente, é desmotivador”, diz Marques.

Luz no fim do túnel

Apesar de muitos hospitais universitário federais terem sentido o rombo do governo, o Hospital de Clínicas opera em normalidade. O depósito do residentes – cerca de 500, na contagem de todas as áreas da Saúde – caiu em dia. O modelo de gestão por contratualização, em que o hospital recebe por serviço prestado, também reduz a dependência em relação ao MEC, e, consequentemente, a repercussão interna dos bloqueios, embora haja apreensão com os próximos passos da pasta.

No fim da tarde desta quinta, Ciro Nogueira, chefe da Casa Civil de Bolsonaro, falou em “uma luz no fim do túnel”.

Ao presidente da Andifes, reitor Ricardo Marcelo Fonseca (UFPR), e ao vice-presidente, reitor Evandro Soares (UFMT), o ministro citou a possibilidade de obtenção de recursos após uma decisão do Tribunal de Contas da União (TCU) que autorizou a abertura de crédito extraordinário ao governo para cobrir gastos em aberto. No entanto, ainda não há definição de valores.

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6 comentários em “Sem um centavo, UFPR e UTFPR vivem “drama sem precedentes””

  1. Bom dia Mariola, o presidente responsável por esse desmonte nas universidades públicas é o atual, e que parece vc é defensora. Então não venha jogar a culpa em quem ainda nem assumiu.

  2. Não poderíamos esperar nada de um governo que atacou as universidades e a ciência, propagando o obscurantismo, o ódio e a intolerância. Vamos sobreviver a este último abuso e seguir em frente!

  3. Uma matéria completa e explicativa como essa enaltece o jornalismo. Nestes momentos tristes para tantas pessoas, que não receberam e não sabem se irão receber seus salários no mês do Natal, contar com um jornalismo sério é nossa esperança

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