Quem é o “soldado desconhecido” do Brasil na Segunda Guerra?

Pesquisador italiano revela DNA de combatente; governo brasileiro nega ter recebido material

Com colaboração de Diego Antonelli

Pelo menos desde 2012, o governo brasileiro já tem o mapeamento genético do último combatente brasileiro da II Guerra Mundial que está enterrado na Itália. É o que mostra o artigo “Análise de DNA dos restos mortais do último soldado brasileiro desconhecido enterrado em Pistoia (Itália)”, do pesquisador italiano Vincenzo Agostini, da Universita Degli Studi Del Piemonte Orientale “Amadeo Avogadro,”de Alessandria, Itália. A pesquisa foi publicada neste ano na revista científica internacional Forensic Sciences Research (Pesquisa em Ciências Forenses, em tradução livre).

Conforme Vicenzo, a exumação do corpo do cemitério de Pistoia, na Itália, foi feita em 6 de dezembro de 2012 e os resultados entregues dias depois para a embaixada brasileira. Quando a sepultura foi aberta, foram observados um crânio com quatro dentes (a mandíbula não estava presente), vértebras, costelas, escápulas, clavículas, complexos sacrais, úmeros, fêmures, tíbias, ossos curtos e outros fragmentos ósseos. Os restos mortais estavam dentro de uma pequena urna, doada pela prefeitura de Montese, em 1967. Também constavam fragmentos de uma manta e “algum material entomológico (provavelmente pupária decorrente de mosquitos) dentro do acetábulo”.

Vicenzo colheu três dentes para serem analisados. “Os componentes do solo e os potenciais agentes contaminantes presentes na superfície dos dentes foram removidos fisicamente com lixa estéril e, posteriormente, com luz ultravioleta (UV) e lavagem com água e etanol. Em seguida, os dentes foram deixados para secar durante a noite. No dia seguinte, eles foram novamente expostos à luz ultravioleta por 30 min de cada lado”, escreveu o pesquisador em seu artigo.

“Apesar do mau estado de conservação, após 70 anos, foi possível obter um perfil de DNA completo, claro e repetível, pertencente a um indivíduo do sexo masculino. Tal perfil certificado foi enviado à Embaixada do Brasil na Itália a fim de submetê-lo ao seu banco de dados nacional de DNA para busca de parentes em potencial e para ser capaz de encontrar pelo menos um descendente e dar um nome ao último Soldado Desconhecido Brasileiro enterrado na Itália. Ainda hoje, porém, não foi possível encontrar parentes do soldado e dar-lhe um nome”, revelou o pesquisador.

Tenente Miguel Pereira, representante do governo brasileiro na Itália, junto com civis italianos, em Montese, em 1967, quando os restos mortais foram encontrados.

Embaixada diz que não

No entanto, mesmo com o artigo veiculado pelo pesquisador italiano, a Embaixada brasileira nega a descoberta da identidade do “Soldado Desconhecido”: “A Embaixada não possui informações sobre o caso. Consultei a Adidância do Exército, que informou que dados sobre o assunto poderão ser obtidas entrando em contato com o DPHCEx – Diretoria do Patrimônio Histórico e Cultural do Exército no Rio de Janeiro”. A informação é da secretária Laura Paletta Crespo, do  Setor Cultural, Imprensa e Mídias Sociais da Embaixada do Brasil em Roma.

A Assessoria do DPHCEX respondeu o seguinte sobre o assunto: “Acusando o recebimento de sua correspondência, a Diretoria do Patrimônio Histórico e Cultural do Exército informa que o tema está em estudo, está sendo aprofundada a busca pelo conhecimento”

O achado

O Soldado Desconhecido de Pistoia foi encontrado em 1967, quando um morador local teria contado a localização da tumba para Miguel Pereira, que atuava como guardião do cemitério dos pracinhas na Itália. Ele atuou como soldado durante a II Guerra Mundial e resolveu ficar na Itália após o conflito.

“O italiano disse aos militares que, durante uma batalha na cidade de Montese, encontrou um soldado brasileiro morto na mata. Como passava por dificuldades por causa da guerra, roubou-lhe as botas e o relógio e depois o enterrou com a ajuda do pai, em meio a escombros, naquela cidade. A ossada encontrada sob um monte de entulho tinha vestígios de fardamento brasileiro, mas não estava com as plaquetas de identificação dos soldados e nem portava documentos”, escreveu o jornalista Mateus Parreiras, para a Folha de S.Paulo, em 2010.

Lima Brayner: militar afimava que Soldado Desconhecido era Fredolino Chimango.

Quem pode ser o soldado?

Os restos mortais dos soldados brasileiros mortos durante a II Guerra Mundial foram transladados para o Brasil em 1960 e depositados no Monumento Nacional aos Mortos da II Guerra Mundial, no Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro.

Ali, 15 dos 467 homens mortos no conflito aguardam identificação até hoje. O 16º está em Pistoia, justamente o que foi geneticamente mapeado. Ao longo dos anos, não faltaram autores para declarar que o soldado enterrado em solo italianose trata, na verdade, de Fredolino Chimango, de Passo Fundo (RS).

Floriano de Lima Brayner, que na guerra tinha exercido a função de Chefe de Estado Maior da Força Expedicionária Brasileira (FEB), no posto de coronel, escreveu no jornal Diário da Manhã, em 16 de abril de 1971, que não tinha dúvidas quanto à identidade do soldado.“As pesquisas por mim realizadas aqui no Brasil, de vez que não foi encontrada até hoje a placa de identidade do Pracinha, permitem concluir tratar-se do cabo Fredolino Chimango”. Mais tarde, reafirmou a mesma opinião no livro “Luzes sobre Memórias”, de 1973.

Citando o próprio Lima Brayner, a pesquisadora curitibana Adriane Piovezan, no livro “Morrer na guerra: a sociedade diante da morte em combate” (2017), lembra que uma porção de terra do local onde foi primeiramente sepultado o “Soldado Desconhecido” – em Montese – foi doada para a sede do 11º Regimento de Infantaria, em São João del Rei (MG). A entrega ocorreu em cerimonial e o soldado teria sido identificado como Fredolino Chimango. Posteriormente, os restos mortais foram levados até Pistoia.

O 3º sargento da Bateria de Comando da Artilharia Divisionária da FEB, Waldir Merçon, no livro “A minha guerra” (1985), também é categórico aoapontar que o “desconhecido” se trata de Fredolino Chimango.

Quem era Fredolino Chimango?

Filho mais velho do casal Edmundo Chimango e Gabriela Francisca da Silva, todos naturais de Passo Fundo, ele teve mais de 10 irmãos. Tinha 22 anos quando foi convocado para a guerra. Não avisou a mãe para não a preocupar, porém o pai descobriu.

Ao ficar sabendo, a mãe teve um ataque de nervos. Edmundo escreveu para o Ministério de Guerra para tentar trazer o filho novamente para o lar. Fredolino já estava treinando no Rio de Janeiro. A mãe tinha adoecido com a notícia. Era tarde. O pedido foi indeferido e Fredolino seguiu para a Itália.

Foi colocado como cabo na 7ª Cia do III Batalhão, do 11º Regimento de Infantaria. Em 14 de abril estava atacando Montese com seus soldados e companheiros. A companhia dele quase foi dizimada na Cota 831, perto de Montese e na madrugada de 15 para 16 de abril precisou ser tirada de linha e substituída por outra do 6º Regimento.

O 3º sargento Ary Roberto de Abreu, substituto enviado para repor baixas do 11º Regimento de Infantaria, disse ter visto, na madrugada de 15 de abril, Fredolino ajudando na evacuação dos feridos. Ele deu tal declaração no livro “Vozes de guerra”, de Sírio Sebastião Fröhlich (2015).

Fredolino Chimango.

Porém, conforme citação de combate registrada pelo Coronel Adhemar Rivemar de Almeida, na parte de combate do 11º regimento, Fredolino morreu tentando ajudar soldados da Companhia vizinha da dele. Escrevendo sobre os atos dos homens naquele dia, Adhemar anotou: “Destaco entre eles o Cabo Fredolino Chimango, falecido, que com sua peça de metralhadora conseguiu heroicamente atingir e neutralizar uma casamata alemã que ameaçava seriamente o flanco esquerdo da 6ª companhia. Apesar da reação do inimigo, o cabo Chimango só deixou de atirar quando sua arma foi atingida em cheio por uma granada de artilharia que lhe levou a vida”.

O paranaense José Dequech, 2º sargento da Cia de Obuses do 11° Regimento de Infantaria, no livro Nós estivemos lá (1985), contou a história de que um conhecido dele, o gaúcho Waldomiro Antunes de Oliveira, teria encontrado rapidamente o corpo de Chimango e colocado em um lugar reservado para ser coletado pelo Pelotão de Sepultamento.

No entanto, o corpo sumiu. “Os restos mortais do cabo Chimango foram transladados para o Monumento Votivo Militar Brasileiro, em Pistoia, onde foi sepultado com as merecidas honras fúnebres, em uma urna gentilmente cedida pelo governo italiano. Já se passaram todos esses anos e ninguém ainda se empenhou em trazê-lo para o Brasil”, escreveu Dequech.

Dos soldados desaparecidos em Montese, conforme o já citado Lima Brayner, somente um não foi identificado: Fredolino Chimango.

DNA serviria para tirar dúvidas

Depois da guerra, a mãe de Fredolino foi quem ficou recebendo pensão dele. Quando ela morreu, quatro filhas passaram a dividir os vencimentos. A última das quatro a falecer foi a Noêmia, mãe da Kátia, a sobrinha de Chimango que mora em Porto Alegre (RS). Ela se esforça para manter viva a memória do tio.

Kátia conta que o sonho da mãe era ver o irmão voltando para casa – nem que, para isso, fossem só os restos mortais. Mas, morreu sem ter o sonho concretizado.

Em 2012, segundo a sobrinha, Noêmia fez coleta de material genético no Hospital do Exército em Porto Alegre para uma eventual comparação com os restos mortais do Soldado Desconhecido. “Nem a família ficou sabendo disso na época”, explica Kátia.

Porém, oito anos depois, nenhuma satisfação foi dada aos familiares. Trata-se de uma linhagem numerosa, a maior parte ainda residente em Passo Fundo, onde Fredolino é nome de praça, escola, rua e estádio de futebol. Outras sobrinhas, Gabrielli, Adriana e Zilda confirmam que a família não foi procurada para nenhum tipo de exame de compatibilidade.

Chegada dos restos mortais em Pistoia, onde foram depositados.

“A história que a gente tinha na família é que ele foi tido como desertor, porque não encontraram o corpo dele. Acharam que ele tinha fugido”, contou Kátia, recordando que era um sonho da família ir até Pistoia para checar se os restos mortais eram mesmo do tio pracinha. Porém, nunca tiveram condições financeiras para tal empreitada. “Nossa família sempre foi muito humilde, nenhum deles tinha instrução superior, todo mundo tinha muito trabalho, passava por muitas necessidades (…), gente muito pobre, muito humilde, que nunca teve como chegar nessa riqueza de detalhes que hoje a gente tem. (…) Não tinha essa tecnologia para identificar o DNA, então ficou o dito pelo não dito”, explicou.

Vicenzo, o pesquisador italiano informou em contato com a Redação, que tem cópia completa da pesquisa e que a cederia ao governo brasileiro ou à família, caso fosse solicitado.

Sobre o/a autor/a

11 comentários em “Quem é o “soldado desconhecido” do Brasil na Segunda Guerra?”

  1. Kátia Chimango Mileski

    Eu sou sobrinha do Fredolino Chimango, embora nenhum irmão mais esteja vivo, os sobrinhos ainda esperam a identificação correta, negativa ou positiva, dos restos mortais em Pistoia e que possamos prestar as devidas homenagens!

  2. Julio Cesar Fernandes Teodoro

    Nossa isso deveria estar escrito nos livros de historia em nossas escolas, herois de verdade como Fredolino Chimango que é facilmente esquecido, que descaso com a familia, enquanto isso se venera nas escolas bandidos,
    Mesmo que isso foi a muito tempo, meus sentimentos a familia de nosso heroi.

  3. O Governo deveria ter pago as custas para que os parentes do cabo pudessem ir a Itália visitar o túmulo e realizar os exames necessários para comprovação

  4. Ângela Maria Dias Flerio

    Em setembro de 1999, meu filho plantou uma muda de arvore na praça em frente à sua escola. Foi uma ação patrocinada em parceria com o Rotary Club de Porto Alegre. Cada muda plantada recebeu uma placa de identificação em homenagem a um ex combatente da FEB. Meu filho plantou a muda em homenagem ao Cabo Fredolino Chimango. Tenho buscado informações a respeito deste herói e torço para que seja realmente confirmado que ele é o Soldado Desconhecido de que fala a historia. A placa de identificação era de madeira e se desfez. No entanto a arvore está lá, crescendo heroicamente e sendo fotografada anualmente por meu filho. Uma homenagem simples , mas com certeza valiosa! Obrigada a todos os pracinhas pelo seus feitos!

  5. gleibher teixeira

    Muitos de nossos heróis da segunda guerra foi esquecido pelas autoridades.
    Conheci alguns que nem sequer pensão recebia. Entre esses o meu pai. Entrou no exército em 1942 na cidade de Almenara MG. De lá seguiu para Vitória no ES. E partiu para a Itália junto com outros 70 homens do seu batalhão. Entre esses o senhor Camilo Cola.
    Depois que retornou da guerra,meu pai foi enviado ao arquipélago de Abrolhos no litoral sul sa Bahia. Ficando la até outubro de 1945. Quando voltou pra Minas, meu pai se dedicou a trabalhar em garimpos de pedras precisas no vale do Jequitinhonha. Depois casou e mudou para a Bahia. Cidade de Prado no povoado de Cumuruxatiba. E ele nunca procurou pelos seus direitos, e nunca foi procurado por ninguém do exército ou mesmo do ministério da defesa.
    Só após sua morte em 2003 que entramos com ação na justiça. Mas deu trabalho pra reunir provas. Tivemos que ir no batalhão onde ele serviu em Vitória, procuramos por outros ex combatentes que serviu junto com ele. Enfim foi uma luta,mas conseguimos provar que meu pai, soldado Antônio Pereira de Souza lotado no terceiro BC de infantaria de Vitória, tinha sido enviado para a Itália. Também conseguimos provar sua passagem pelo arquipélago de Abrolhos.
    Mesmo com tudo isso o ministério da defesa se recusou a analisar o caso.
    Só se prontificaram a analisar quando foi notificado pela justiça.
    Mas até hoje não tivemos nenhuma resposta por parte do ministério da defesa. Ja teve varias audiências e nenhum resultado. O ministério da defesa alega o motivo de meu pai não ter procurado seus direitos antes. Informamos que ele era semi-analfabeto e que viveu quase que toda sua vida na roça e não tinha conhecimento de todos os seus direitos.
    Enfim isso mostra que muitos ex combatentes não foi reconhecido como soldados. Espero que um dia tudo isso possa ser esclarecido.
    Até porque esses bravos guerreiros lutaram numa guerra que não era nossa.
    Se sacrificaram para defender a soberania de outras nações.

    1. Boa parte dos pracinhas, como eram conhecidos os combates, eram do campo, pessoas da agricultura ou da agropecuária. Muitos foram para guerra sem nunca ter pego numa arma de fofo antes. E o reconhecimento foi este que teu pai teve. Absurdo isso! Tomara que se tudo não deu certo ainda para você filho de guerreiro, venha a dar. Pois, seu pai é um herói e deve ser reconhecido como tal. Tive a oportunidade e honra de em minha infância onde moro ter conhecido um desses heróis da 2º Guerra. Contava muita história de experiências no Monte Castelo. Gostava de ouvir. A situação lá foi terrível, livro de história nenhum chega aos pés do que ele me contou, me senti no lugar. Horrível! Inferno na terra!

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