Projeto de revitalização da orla de Matinhos pode destruir ecossistemas únicos

Pesquisadores da UFPR apontam problemas no projeto que custará mais de R$ 500 milhões

Reportagem de Bruna Bronoski

Um grupo de trabalho que envolve diversos pesquisadores da Universidade Federal do Paraná (UFPR) publicou documentos questionando a obra milionária do governo de Ratinho Júnior (PSD) para o litoral. O Projeto IAT-Aquamodelo 2020 prevê engorda da praia de Matinhos e a revitalização da orla. Mas os especialistas alertam para os efeitos colaterais que incluem a salinização do Rio Guaraguaçú.

Um rio de água doce tem características e ecossistemas muito diferentes do mar de sal. Na bacia hidrográfica litorânea correm as águas do Guaraguaçú, importante rio por diversas razões. É nas suas nascentes que estão estações de captação de água para abastecer três municípios: Matinhos, Pontal do Paraná e indiretamente Paranaguá, pela Serra da Prata. Em seu curso, o Guaraguaçú também dilui e conduz o esgoto das estações de tratamento das cidades litorâneas em direção à baia de Paranaguá. O rio ainda serve à atividade pesqueira e ao turismo ecológico.  Esse rio pode ser “invadido” por água salgada por uma obra que deve encurtar seu caminho até o mar.

Em que isso pode ser um perigo? Existem questões químicas e físicas decorrentes da salinização de um rio. Durante as marés mais altas, a água salgada do oceano pode estar em níveis mais altos que o leito Rio Guaraguaçu, interferindo no trajeto natural das correntes fluviais dos canais. Já o fator químico ocasionaria mudanças no ecossistema do rio, que tem seus microorganismos próprios e alimenta os peixes adaptados àquele habitat. A água salgada causaria interferência nos ciclos migratórios e no metabolismo de peixes e outras espécies de animais e plantas aquáticas, descaracterizando o ambiente.

O alerta sobre a provável salinização do Guaraguaçú foi apontado por um professor do Departamento de Ciências Ambientais da UFPR Litoral. O professor Paulo Marques notou que um canal artificial proposto pelo projeto diminuiria a distância entre o mar e o trecho médio do Rio Guaraguaçú. O canal seria construído no Balneário Saint-Etienne, em Matinhos, sob a justificativa de controlar as cheias que ocorrem na cidade. “Se abrir um canal no Balneário Saint-Etienne, nos eventos de maré alta o nível do mar vai ficar muito acima dos canais, vai entrar água neles. E isso pode ocorrer lá no Rio Guaraguaçú também. Se os canais forem salinizados, a função de diluição dos esgotos pode ser comprometida”, avisa Marques. O professor explica que o rio presta um grande serviço ambiental recebendo a matéria orgânica do esgoto já tratado, já que possui um ambiente capaz de diluir e distribuir estas substâncias em seu curso.

O que o grupo de pesquisadores da UFPR questiona é a falta de estudos de impacto ambiental para as obras propostas. Marques aponta que, no caso do canal de Saint-Etienne, faltam estudos de previsão do movimento das águas, que pode mudar totalmente a função do canal: “Só foi apresentado o projeto de escoamento do canal para o mar, mas não se estudou o fluxo de água que poderia ser criado em direção ao Guaraguaçú. Se o Guaraguaçú recebe um aporte de água salgada, isso mudaria completamente o ambiente. Seria um impacto de grande magnitude”. Entre eles, interrupção do fluxo migratório e a morte de peixes. A reprodução de várias espécies também estaria ameaçada, pois ela ocorre nas áreas de mangue, ecossistema de ligação entre rio e mar e berçário da vida marinha. O Guaraguaçú é um dos mais importantes berçários da costa paranaense.

Não é a primeira vez que se questiona o projeto, cuja licitação deve destinar R$ 383 milhões do orçamento público apenas para a primeira fase. Em setembro e novembro de 2020, outras duas notas foram publicadas pelo grupo da UFPR. Para um dos pesquisadores, Eduardo Vedor de Paula, outro grande problema está nos planos do governo para fazer a engorda da praia. Professor do departamento de Geografia, Vedor questiona os estudos prévios da fonte da matéria-prima para aumentar a faixa de areia de Matinhos. “A universidade não é contra a engorda. Mas tem uma grande pergunta, de onde viria a areia? Não tem areia. A nossa plataforma tem pouca areia e muita lama. A obra vai colocar lama pra engordar a Praia de Matinhos e vai ser o caos. A chance de necessidade de outras obras pra corrigir essa é bem grande”, prevê o geógrafo.

Os pesquisadores da UFPR enfatizam que o projeto não fez medições adequadas de volume e das características da areia e da viabilidade de dragagem para o local da engorda. “Um dos testes para essa medição, a cubagem, não foi aplicado com parâmetros confiáveis”, reforça Vedor.

A implantação de grandes estruturas perpendiculares à costa é outro ponto de atenção. O projeto prevê um espigão (estrutura transversal à costa que sai da areia e entra no mar até a faixa de rebentação), dois headlands (espigões com espaço para praças na extremidade que fica no mar) e três pares de guias-corrente (dois espigões, um em cada margem do rio). Estas estruturas não estavam presentes no projeto de 2010 e são questionadas por alterarem significativamente a dinâmica das correntes marítimas da costa. “A dinâmica das correntes de água vai do sentido sul pra norte. Os trabalhos de geologia costeira da UFPR mostram que a deriva no litoral do Paraná movimenta de 30 a 50 mil caminhões de areia por ano. As ondas tiram areia de um lugar e jogam mais pra frente. Quando você coloca os espigões, essa areia toda vai ficar retida de um lado. Quem vai assumir o custo de bombear artificialmente sedimento de um lado para o outro? O que a natureza faz de graça vamos ter que assumir. Quanto custa isso e quem vai fazer?”, pergunta Vedor aos responsáveis pelo projeto.

Como consequência, a areia retida em Matinhos deve faltar em Pontal do Sul e em outras praias. “Hoje Ipanema, Shangrilá, Atami e Pontal do Sul, balneários com grande número de veranistas nas férias, começarão a sofrer com erosão. Você gera um problema onde não existe e isso não foi respondido. Temos certeza que vai acontecer, não é um cenário hipotético”, afirma Vedor.

Além disso, estas obras contendo espigões não foram analisadas pelo Estudo de Impacto Ambiental (EIA 2009) do primeiro projeto, de 2010. Segundo o Instituto Água e Terra (IAT), o projeto será realizado em duas etapas, sendo que os espigões estão previstos para a segunda fase e só serão executados após licenciamento ambiental.

Se até aqui a análise aponta prejuízo para veranistas, pescadores, sistema de abastecimento de água e captação do esgoto de toda a população, ainda outro grupo pode ser afetado. As ondas procuradas pelos surfistas no Pico de Matinhos podem mudar, dissipando-se e rebentando de outra forma, desconhecida.

Conforme o Projeto IAT-Aquamodelo 2020, um dos espigões será implantado ao norte da Praia Brava em Caiobá, próximo ao Pico de Matinhos, e haverá engorda da praia nesta região. Os pesquisadores apontam modificações no fundo do mar próximo à costa, o que deve alterar a dinâmica das ondas. Dá pra saber se haverá ondas para a prática de surfe depois da obra? Exatamente por não haver este estudo específico no projeto é que não dá para prever.

O edital de licitação foi lançado pelo governo do Estado em junho deste ano para concorrência de empresas. A primeira fase é de revitalização da orla de Matinhos, em 6,3 quilômetros entre a Avenida Paraná e o Balneário Flórida. A previsão de orçamento público para a primeira e segunda fases deve ultrapassar meio bilhão de reais.

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