Principal afetado por óleo da Petrobras, Rio Iguaçu não entra na lista de projetos do governo do Paraná para compensação de danos

Proposta do governo Ratinho Jr. é aprovada sem orçamento e metodologia definidos

Sentado na barreira de contenção das águas, o morador da Vila São Judas tenta sintonizar o aparelho de rádio que tem no colo. As águas do rio Iguaçu passam atrás de suas costas.

“É poluído”, constata Amado Bernardes de Lima. Mesmo que não tivesse dito nada, ainda assim daria para confirmar a afirmação pelo odor forte de esgoto. “Quando chove muito, essa água sobe até os palanques de concreto”, conta.

Todo mundo sabe onde as águas do Iguaçu desaguam. Vem turista do Japão para ver o espetáculo na fronteira do Brasil com a Argentina. Mas poucos citam o local onde as mesmas águas das Cataratas do Iguaçu nascem.

A nascente do rio Iguaçu é tomada por lixo e detritos de construção civil e fica na divisa dos municípios de Curitiba e São José dos Pinhais. Tributário dos rios Atuba e Iraí, o marco zero fica embaixo da ponte onde passa a BR-277, entre os quilômetros 76 e 78.

No domingo de sol em que conheci a nascente do Iguaçu, só alguns minutos foram suficientes para ver vários trabalhadores indo pescar no dia de folga. É o caso do Jorge Bune dos Santos, pedreiro que aproveita as horas vagas à montante do rio. “Lá para cima tem lambari, acará, tilápia”, lista Santos.

Carregando a mochila e a varinha, ele explica as mudanças do rio nas estações do ano.

“No verão chove mais e a água leva a poluição. Mas no inverno essa água fica preta, parece um esgoto a céu aberto.”

Jorge Bune dos Santos, pedreiro.

Perguntei se neste ponto, onde nasce o Iguaçu, dá pra pescar. Fez que não com a cabeça.

O lixo da nascente de um dos mais importantes rios paranaenses não é só doméstico. Ao lado da carcaça de aparelhos de TV, sacolas plásticas e roupas, também há manilhas dentro do curso d’água, sem conexão com qualquer sistema de escoamento. O rio, assoreado, deixa ilhas de pedras e areia à mostra. Ali mesmo, a poucos metros, fica uma estação de captação de água da Sanepar.

Retificado, o rio no perímetro da capital é marcado pelas sobras de atividades de mineração nas duas margens. Os antigos areais explorados deixaram cavas onde nenhuma vegetação cresce, tamanha a alteração ambiental.

Seguindo o curso do rio, há ocupação humana. A estrutura das casas denuncia a condição de vulnerabilidade social das famílias que, por falta de condições sociais e financeiras, só têm as margens do Iguaçu para viver.

Ocupação às margens do Rio Iguaçu, em Curitiba. Foto: Bruna Bronoski/OJC.

Esta realidade que conheci só em 2022 é familiar para José Álvaro Carneiro há alguns anos. O ex-superintendente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, o Ibama, desceu o rio com pequenas embarcações mais de uma vez. Também já o observou do alto, sobrevoando a região. Autor do livro Nascentes, Corredeiras e Cachoeiras do Alto Iguaçu, Carneiro critica o fato do Iguaçu ser lembrado apenas no Centro Cívico da capital paranaense.

“O Iguaçu é muito importante para o estado, ele dá nome ao palácio do governo. Mas aqui, onde ele nasce e existe, é tratado com total descaso. Será que a gente poderia fazer algo por esta área onde nasce o Iguaçu? Eu acho que deveríamos fazer muito”, contesta.

Livro lançado em 2016 contextualiza os vários cenários do Iguaçu, da nascente até a divisa do Alto para o Médio Iguaçu, em Porto Amazonas. Foto: divulgação.

Em julho de 2000, os rios Iguaçu e Barigui foram atingidos pelo derramamento de 4 milhões de litros de óleo cru que vazaram do oleoduto da Repar, a Refinaria Presidente Getúlio Vargas da Petrobras. Por causa do desastre, um acordo foi firmado entre a estatal e o Ministério Público do Estado do Paraná, 21 anos depois, para o pagamento de quase R$ 1 bilhão ao Fundo Estadual de Meio Ambiente (Fema). 

Carneiro imagina possíveis melhorias para o local. “Poderia ser feito um parque e uma ciclovia neste trecho do rio. Dar um lugar de lazer para as famílias que vivem aqui, assim todo mundo valorizaria mais o espaço”, sugere. O ambientalista também acredita que a mudança de relação das pessoas com os rios começa pela educação ambiental. “Temos um problema cultural com nossas águas e a única solução para isso é a educação. As instalações do antigo Memorial da Imigração Japonesa, por exemplo, poderiam ser um observatório, um lugar para desenvolvermos projetos de recuperação de todos os rios.”

Segundo o Termo de Acordo Judicial (TAJ), ao menos 5% do total da verba deve compensar ambientalmente o dano causado dentro da bacia. Isso corresponde a R$ 46 milhões. Do valor total da indenização, de quase R$ 1 bilhão, o governo do Paraná já aprovou R$ 441 milhões para diversos projetos, suspensos pela 11.ª Vara Federal de Curitiba na última sexta-feira (18). No entanto, os dois rios mais afetados pelo desastre não aparecem em nenhuma das propostas de compensação de danos do governo Ratinho Jr. (PSD).

O rio poluído da “Curitiba ecológica”

Quando o óleo cru da Repar corria pelas águas do Barigui, seu José Alceu Malamin já morava às margens do rio há dois anos. “Começou a aparecer o preto do óleo no capim, nos barrancos do rio. Foi aumentando. E daqui o óleo foi para o Iguaçu.”

A referência do seu Malamin é o rio Barigui, que fica a duas quadras da sua casa. Ele viu o prejuízo ambiental bem de perto. “Eu ia pescar na época, mas parei porque achava peixe morrendo. As asas dos passarinhos e marrequinhos grudavame eles não podiam voar”, relembra o morador da ocupação urbana do Caximba, ao sul de Curitiba. Neste trecho, o rio que corta a capital paranaense também está poluído, conta.

Há cerca de dois anos uma máquina alargou mais o Barigui neste trecho, já retilíneo. O rio corta 3 vilas do bairro Caximba: Abraão, Milinho e 29 de Outubro. As cerca de 12 mil pessoas que vivem no bairro, segundo a Associação de Moradores do Caximba, estão vulneráveis a problemas de saúde por causa das condições do rio.

“A gente fala para os moradores não entrarem na água, não deixarem as crianças entrarem nele”, diz Jorge Nunes, presidente da associação.

Nas duas margens, o Barigui não possui mata ciliar. Numa tentativa individual de diminuir o assoreamento do rio, seu José Carlos Soares, de 70 anos, planta árvores no barranco. “Tem limoeiro, pitangueira, abacateiro. Eu cuido, queria mesmo é que o governo investisse aqui para tratar o esgoto das casas antes de jogar no rio”. Há anos a prefeitura de Curitiba tem projeto para retirada das famílias do local, que ainda não saiu do papel.

José Carlos Soares, 70 anos, planta mudas no trecho do rio Barigui que passa em frente a sua casa, no bairro da Caximba. Foto: Ariane Pigosso/OJC.
Rio Barigui, na Bacia Hidrográfica do Alto Iguaçu, 22 anos após o derramamento de óleo. Foto: Ariane Pigosso/OJC.

Governo ignora o Alto Iguaçu

Entre os 14 projetos do governo Ratinho Jr. já aprovados para o item 4.2.4 do acordo, que destina recursos exclusivos para ações de compensação ambiental na bacia hidrográfica do Alto Iguaçu, estão a compra de trituradores de galhos, caminhões de lixo e abertura de estradas rurais.

“Tratam-se de propostas vinculadas somente ao financiamento de equipamentos para implementação de políticas públicas setoriais, em ações que já deveriam estar sendo atendidas pelo Poder Público”. A afirmação é do documento produzido por nove organizações ambientais para compor o processo que corre na 11.ª Vara Federal de Curitiba e que pode revogar a aprovação dos projetos. A decisão judicial ainda não saiu.

Fazem parte do grupo de organizações a Associação de Protetores de Áreas Verdes do Paraná (APAVE), Associação MarBrasil, o Grupo de Estudos Espeleológicos do Paraná – Açungui (GEEP-Açungui), Grupo Universitário de Pesquisas Espeleológicas (GUPE), Instituto de Estudos Ambientais Mater Natura, Observatório de Justiça e Conservação (OJC), Rede de Ongs da Mata Atlântica (RMA), Rede Nacional Pró Unidades de Conservação (Rede Pró-UC) e o Instituto de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS). 

Segundo o advogado e especialista em direito ambiental Fabiano Neves Macieywski, a não aderência dos projetos à questão direta de compensação ambiental pode ferir o Princípio da Reparação Integral do Dano Ambiental. “Corre o risco deste princípio ser afrontado diametralmente se os projetos não atenderem os conceitos de recursos ambientais com a compensação e a reparação do meio ambiente propriamente dito, especialmente o sistema ambiental vítima do acidente, no caso a bacia do rio Iguaçu, sua flora e fauna, devendo esta ser a linha mestra dos projetos ambientais”, explica Macieywski.

O projeto Rio Vivo – Gestão de Mananciais, proposto pelo Instituto Água e Terra (IAT), é o que mais se aproxima de um plano de conservação das águas, já que descreve a necessidade de proteção de nascentes na bacia hidrográfica. Na descrição, o governo prevê a “restauração e proteção de 50 nascentes, a recuperação e isolamento de Áreas de Preservação Permanente [APPs] e a recuperação e manejo da área de entorno”.

No entanto, o projeto não lista quais nascentes devem ser contempladas por estas ações, tampouco calcula a fatia do recurso necessária para viabilizá-las. Mesmo sem estas informações, o projeto Rio Vivo – Gestão de Mananciais foi aprovado pelo CRBAL em 15 de dezembro de 2021

Na reunião de aprovação, a conselheira e procuradora-geral do Estado, Letícia Ferreira da Silva, fez menção ao fato de não haver valores e outras definições no projeto. Silva pediu para registrar em ata que “as últimas fichas que vieram já não têm os valores especificados, que se está aprovando a aderência dos programas e projetos e que aguarda o Plano de Aplicação para aprovar os valores”.

Em nota, a Secretaria Estadual de Desenvolvimento Sustentável e do Turismo (Sedest), autora do projeto, respondeu que “apenas a sua Ficha Técnica foi aprovada pelo CRBAL, o que significa que há aderência da proposta ao acordo judicial” e que “o Plano de Aplicação do referido projeto, onde devem constar dados como valores e áreas atendidas, ainda não foi apreciado pelo conselho”.

O governo informou que fará uma vistoria no local de propriedades privadas para levantamento e diagnóstico das nascentes. De acordo com as organizações, esta é uma tarefa inviável, já que o Paraná, segundo o último Censo Agropecuário de 2017, possui ao menos 305 mil imóveis rurais. “A proposta sequer apresenta mapeamento demonstrando quais delas possuem nascentes em seu interior. O método de escolha dessas 50 nascentes apresentado é insuficiente, em função do amplo território”, afirma o documento. Para o corpo jurídico das organizações ambientais, o projeto é ineficiente.

Restauração e recuperação são única saída

O assoreamento e poluição não são exclusividade dos rios Iguaçu e Barigui. Devido ao uso intenso do solo em todo o Paraná, praticamente todas as bacias hidrográficas sofrem de alterações dos cursos d’água.

“Ao longo dos anos, saímos de uma matriz de florestas para uma de agricultura e pastagens. O uso do solo foi muito intenso no Paraná.”

As margens dos cursos d’água deveriam ser protegidas, já que são consideradas áreas de proteção permanente. Essa proteção existe há 10 anos, a partir da lei federal 12.651/2012. A lei determina que é compromisso do país manter a vegetação nativa nessas regiões “para o bem estar das gerações presentes e futuras”.

O biólogo e coordenador de programas na SPVS Brasil, Nicholas Kaminski, explica que o rio Iguaçu é cercado por áreas de várzea onde naturalmente ocorrem as cheias do rio em períodos de chuvas. Neste começo de ano, Curitiba já sofreu com precipitações volumosas.

“Estamos falando dos eventos climáticos extremos, de grandes chuvas. Ter as várzeas bem conservadas é imprescindível para evitar e minimizar impactos como desastres de alagamentos, enchentes, entre outros.”

Nicholas Kaminski, biólogo e coordenador de programas na SPVS Brasil.

Por esse motivo, Kaminski acredita que há prioridades mais urgentes para uso do recurso da Petrobras do que a compra de trituradores de galhos e abertura de estradas rurais.

“A restauração da vegetação é uma ação bem onerosa, por isso esse recurso tem que ser usado de maneira assertiva, para ações bem direcionadas. Recuperar mata ciliar dos rios afetados é fundamental”, conclui.

Segundo dados recentes do Consórcio MapBiomas, de agosto de 2021, o Brasil já perdeu, nos últimos 30 anos, 3,1 milhões de hectares da sua superfície original de água. Isso equivale, segundo o estudo, a quatro vezes a área do estado do Rio de Janeiro. O Paraná está entre os 10 estados que mais perderam a superfície de água no período, com diminuição de 5% na região hidrográfica do Paraná.

Alto Iguaçu foi a região mais afetada pelo derramamento de óleo em julho de 2000. Fonte: Sema – governo do Paraná.

Para especialistas da área de recuperação ambiental, restaurar ou recuperar uma área degradada como a da bacia do Alto Iguaçu exige um amplo programa técnico, que leve em conta o contexto topográfico e hidrográfico do rio e seus afluentes.

“Não dá pra cuidar só da faixa do rio, ou proteger apenas as nascentes dentro das propriedades. É preciso fazer uma ação conjunta”, aponta Jorge Bellix de Campos, presidente da Associação Mata Ciliar.

“Cada situação de rio ou trecho tem que ser olhada individualmente levando-se em conta a permeabilidade do solo, as trocas genéticas de biodiversidade da fauna e flora do local, e vários outros fatores”, alerta Campos. “Para uma melhor aplicação do recurso, é preciso fazer um diagnóstico profundo da área”. O que não foi feito nas cinco páginas do projeto aprovado pelo governo.

Reportagem produzida pelo Observatório de Justiça e Conservação.

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