Pinhais barra candidata com Lábio Leporino como PcD em concurso e acende debate sobre deficiência

Candidata com fissura labiopalatina não pôde disputar vaga de PSS como PcD

Desde o dia em que nasceu, em 23 de fevereiro de 1977, Rose Maria Leite convive com uma condição conhecida como fissura labiopalatina, ou lábio leporino. Em maio deste ano, Rose se candidatou como PcD (pessoa com deficiência) para uma vaga de educadora infantil pelo Processo Seletivo Simplificado (PSS) de Pinhais, na Região Metropolitana de Curitiba (RMC), mas teve sua inscrição indeferida porque a malformação no lábio não foi considerada uma deficiência pelo edital do processo.

Alfabetizada aos 10 anos de idade, Rose conta que sempre sonhou em ser professora. Quando alcançou a maioridade, começou a trabalhar em uma pré-escola, mas, depois de formar-se na Faculdade Padre João Bagozzi, não exerceu mais o magistério. “Diziam que eu não tinha perfil de professora. Ninguém queria que eu lecionasse para os filhos porque achavam que eu ia lecionar errado. Eu tenho todos os requisitos né, eu sou negra, sou pobre e sou deficiente.”

Rose passou um tempo atuando como manicure, mas nunca deixou a vocação de professora de lado. Desempregada há um ano e meio e no meio do curso de Serviço Social, decidiu se candidatar à vaga de Educadora Infantil no PSS de Pinhais, aberto em 7 de maio deste ano. 

A universitária de 44 anos fez sua inscrição como PcD, uma vez que tem “fenda dos palatos duro e mole com fenda labial unilateral”, como consta no laudo médico. “É uma deformação congênita que afetou o palato inteiro e a laringe, por isso eu tenho uma fala meio fanha”, conta. Rose é a única da famíliaque tem a deformidade. Ela já passou por 28 cirurgias e faz tratamento com fonoaudiólogo, psicólogo e dentista no Centro de Atendimento Integral ao Fissurado Lábio-Palatal no Hospital do Trabalhador (Caif/HT), sem previsão para terminar.

De acordo com Rose, em 15 de julho, após receber uma mensagem da Prefeitura de Pinhais confirmando a convocação, lhe foi dito que ela deveria apresentar, naquele dia, a documentação necessária ao RH da pasta. “Tiraram minha foto, fizeram biometria. Me deram um papel dizendo que segunda-feira [19] teria a reunião de escolha de sala. Fui na reunião e lá eles me avisaram que o meu processo tinha sido indeferido”, relata. 

Rose afirma que a prefeitura não aceitou sua inscrição como PcD pois a fenda labiopalatal não seria considerada uma deficiência. “É muito frustrante e triste você ter que provar que tem uma deficiência. É uma luta dolorosa, muito doida e desigual. Já passei por muitas situações, mas essa para mim está sendo a pior”, comenta.

Para tentar reverter a decisão, Rose está sendo defendida pelo advogado e professor de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Paulo Opuszka. “No caso da fenda palatina não tratada ou em tratamento, a pessoa tem deficiência de fala, audição, para se alimentar e etc. Então obviamente o portador é deficiente, e essa é uma deficiência visível inclusive.”

Segundo Paulo, que também é doutor em Direitos Humanos, por muito tempo o lábio leporino foi excluído do rol de deficiências porque se considerou que era apenas uma deformidade estética. Sobre o caso de Rose, o advogado afirma que a médica da prefeitura “só olhou se a doença estava na lista da Lei ou não, e nada mais, e a procuradoria seguiu a orientação sem maiores explicações e disse que a deficiência não está na lista”.

A defesa de Rose entrará com um mandado de segurança, alegando como ato coator o indeferimento da prefeitura. “Se o juiz entende a legislação como ela está sendo entendida na jurisprudência atual, a Rose será chamada imediatamente. Essa é a nossa tese”, finaliza Paulo.

O que diz a prefeitura 

Procurada pela reportagem, a Prefeitura de Pinhais informou que o processo seguiu todas as normas estabelecidas no edital de abertura e diante do parecer das equipes técnicas e da Procuradoria Geral do Município, a documentação apresentada por Rose foi indeferida.

Em nota, o governo municipal afirmou que Rose não comprovou o alegado na inscrição, “não atendendo aos critérios mencionados para a vaga de PcD, conforme previsto no edital do referido processo seletivo que cita quem são consideradas pessoas com deficiência com base no Decreto Federal 3298/199, alterado pelo Decreto 5296/2004”. 

“Vale destacar que os candidatos que foram convocados, entregaram a documentação, fizeram todos os procedimentos para contratação e na sexta-feira, dia 16 de julho, todos os candidatos que estavam com a documentação correta, receberam uma ligação do Departamento de Gestão de Pessoal para comparecerem no dia 19 em reunião de admissão. O que não ocorreu com a candidata Rose Maria, ainda assim ela compareceu na reunião e foi informada que seu processo havia sido indeferido, e que a resposta formal seria feita posteriormente, pois diante da urgência da contratação para o retorno do recesso escolar a resposta foi realizada somente para os casos deferidos.”

Como no entendimento da prefeitura a deficiência de Rose não estava de acordo com os termos da Legislação citada no edital do processo, ela passou a disputar a vaga pela ampla concorrência, ficando na posição geral 425.

Conforme o edital, são consideradas PcD pessoas que se enquadram nas categorias de I a VI listadas no artigo 4º do Decreto Federal n° 3.298, de 20 de dezembro de 1999. Entre elas encontram-se as deficiências auditivas, visuais, mentais, pessoas com transtorno do espectro autista e deficiências físicas, definidas como: “alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando o comprometimento da função física, apresentando-se sob a forma de paraplegia, paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia, triparesia, hemiplegia, hemiparesia, ostomia, amputação ou ausência de membro, paralisia cerebral, nanismo, membros com deformidade congênita ou adquirida, exceto as deformidades estéticas e as que não produzam dificuldades para o desempenho de funções”. 

O edital nº XX, de 5 de julho, prevê o resultado final e a classificação das pessoas com deficiências. O nome de Rose consta como segundo lugar.

Legislação

O conceito de deficiência não é imutável, podendo ser modificado de acordo com o contexto social, como aponta Paulo Opuszka.

O Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015) prevê que a deficiência, além do aspecto médico, deve ser entendida como a interposição de fatores que dificultam a inclusão das pessoas no contexto social.

Em 2018, foi apresentado o Projeto de Lei 11217/18, que determina que as pessoas com fissura palatina ou labiopalatina não reabilitadas sejam reconhecidas como pessoas com deficiência. Atualmente, a proposta tramita na Câmara dos Deputados.

Afinal, Lábio Leporino é uma deficiência?

Antes de entrar no debate da fissura labiopalatal ser ou não considerada uma deficiência, é importante diferenciar lábio leporino de fenda palatina. O primeiro é uma separação do lábio superior, normalmente logo abaixo do nariz, enquanto o segundo é uma abertura na parte superior do céu da boca (o palato) que causa uma fenda para dentro do nariz. É comum, no entanto, que as duas ocorram simultaneamente. 

A fissura labiopalatal é uma malformação que ocorre no embrião logo nos primeiros meses de desenvolvimento, podendo ser identificada ainda na gestação, por meio de exames de imagem (ecografia). Quem explica é a psicóloga da Associação de Reabilitação e Promoção Social ao Fissurado Lábio Palatal (AFISSUR), Denise Souza. 

Denise, que atua há mais de 24 anos com crianças que tem essa condição, esclarece que a fissura labiopalatal está relacionada com fatores tanto genéticos quanto ambientais, tal como o uso de algumas medicações como anticonvulsivantes. “É uma descontinuidade na formação. No processo de grupamento das células, faltou um pedacinho para formar aquela região.” 

De acordo com a psicóloga, as fissuras são diversas: podem ser labiais e palatinas (quando atingem o lábio e o céu da boca ao mesmo tempo), ou só labial e só palatina. Além disso, podem ser unilaterais (quando atingem apenas um lado do lábio ou céu da boca) ou bilaterais. No entanto, seja qual for o tipo da malformação, todas podem comprometer funções do corpo como a audição, deglutição e fala.

Segundo Denise, uma em cada 600 crianças nasce com fissura labiopalatal no Brasil. O tratamento, além de envolver uma abordagem multidisciplinar, precisa aguardar o crescimento ósseo da criança, e por isso, é longo e complexo, podendo durar mais de 15 anos. “A família e a criança precisam estar preparadas para lidar com isso psicologicamente também. É uma malformação que atinge aspectos estéticos, funcionais e sociais”, afirma Denise. 

O professor de Cirurgia Plástica da UFPR e médico do Caif/HT Renato Freitas explica que a fissura labiopalatina é uma falha de fusão entre as estruturas que deveriam formar a face. “Ela tem uma conotação estética e uma funcional. A fenda aberta distorce a estética facial, altera a forma do lábio e do nariz. Mas ela também pode alterar a arcada dentária e a fonação.”

O médico destaca que os procedimentos são múltiplos: além do paciente precisar de tratamento dentário, ortodontia, fonoaudiologia e psicologia, deverá passar por pelo menos três cirurgias, uma operação no lábio aos 6 meses, outra no palato com 1 ano e aos 9 um enxerto ósseo na região dos dentes. Aos 15 anos, o paciente passa por uma reavaliação e eventuais novas cirurgias.

Renato entende que atualmente, de modo geral, as pessoas com fissuras labiopalatais não são consideradas como deficientes. “Alguns pacientes podem ficar com algumas deficiências, principalmente auditiva ou de fonação. Eles são deficientes se tiverem perda auditiva, se tiverem alguma outra coisa associada, e não pela fissura exclusivamente”, esclarece.

Para a psicóloga do AFISSUR, ainda há pouca informação sobre a fissura labiopalatina. Isso, junto com o fato de a malformação poder se apresentar de diferentes formas e atingir as pessoas de maneiras diversas, dificulta o consenso sobre a deformidade ser ou não uma deficiência. 

Reportagem sob orientação de João Frey

Sobre o/a autor/a

11 comentários em “Pinhais barra candidata com Lábio Leporino como PcD em concurso e acende debate sobre deficiência”

  1. Claudio lima costa

    Eu tenho labio leporino e fenda palatina e não desejo a ninguém, pois só quem tem sabe a dor que causa, e a dor que sente,não desejo a mulher por mais ruim que seja ter um filho nessas condições ,até porque quem sofre na Pelé não é tanto a mãe mais sim filho como eu já sofri e sofro até hoje,um abraço pra quem fala merda sem conhecer a nossa realidade.

  2. Situação extremamente complicada, que precisa urgentemente, chegar em uma jurisprudência favorável, ou finalmente os projetos de lei que incluem, entrarem em vigor.

    Aos que falam que é “mi-mi-mi”, só digo que busquem o estudo, o prático e com material humano vivo, ou seja, vá conhecer de perto os casos reais de fissura labial e fenda palatina.
    Não é frescura, é deficiência.
    Superar as etapas para entrar no mercado de trabalho, a dispor da situação complexa de saúde, é uma grande vitória!
    Escolhem um ladrão “nine” para governar, contudo não abrem espaço para os bons trabalharem, dentro de suas características especiais.

  3. Você disse tudo Fábio.
    Somente nós que possuímos essa deficiência sabemos o que a sociedade nós impõe.
    A essa moça,por favor tenha mais amor aí próximo

  4. Firmar jurisprudência para ontem, já que a lei não se ajeita. Ou são aceitos em todos os casos ou não são. O que não pode acontecer é um concurso de determinado lugar aceitar e outro não.

  5. Lábio leporino, vitiligo, cicatrizes de acidentes ou de queimaduras, sequelas físicas de cirurgias, etc. São condições prejudiciais à imagem da pessoa, mas não são deficiências. Enquanto no ocidente todos ficam ofendidos por qualquer motivo, o país onde surgiu a peste trabalha e educa seus cidadãos como soldados preparando-se para a guerra. Num futuro próximo os politicamente corretos, vitimistas e mimimistas estarão sob o domínio chinês, que então vai acabar com toda essa lenga-lenga progressista.

  6. Como vcs tentam forçar situacoes onde nao existe.
    Se nao esta na lista de deficiencias, o caso esta encerrado.

    Mas vcs, na tentativa de criar uma narrativa, forcam a barra.

    Procurem fatos relevantes para mostrar a sociedade, pois as pessoas ja estao fartas desse mimimi

    Que ela se especialize em cuidar bem das maos das pessoas, seja feliz e pare de buscar desculpas nos outros por sua falta de aptidao!!

    1. A senhora tem esta deficiência? Alguém na família? No dia em que estiver na pele de alguém que tem você entenderá o que significa. Postas fechadas, dificuldade em socializar-se, bullying, preconceito, pré julgamento dentre outras exclusões. Há uma deficiência em você e está não tem cura, falta de empatia, se colocar no lugar dos outros, eu tenho fenda palatina e falo com propriedade, tentei agora com normalidade, ser aceito nesta sociedade putrefa onde o que não é belo não está no padrão aceitável.
      A moça não está com vitimismo, ela é vítima de pessoas como você a vida inteira, excluem quem tem defeito e venda os olhos a seus direitos. Não te desejo ter filho com este problema, pois a mãe sofre com o filho junto, e este sofrimento não desejo a ninguém, nem a alguém como você.

  7. Difícil a situação. Não dá para negar que a profissional sofre por causa da sua condição. Ao mesmo tempo, não creio que seja simplesmente um caso de que ela deva ser aceita pela vaga para PCDs, pois é um argumento válido que as oportunidades que ela tem por causa de sua condição, são maiores do que pessoas com outros tipos de PCDs, como os listados pela prefeitura.

    Num mundo ideal, com certeza gostaria que ela tivesse a vaga, mas sabendo que as vagas são limitadas, se ela entrar, outra PCD perderá a sua vaga, talvez uma pessoa com menos oportunidades ainda devido à sua deficiência.

    Não sei dizer o que seria o correto nesta situação.

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