“Não sabia que preto podia ser advogado”, diz servidora do INSS para advogada em Curitiba

Catia Yoshida foi presa em flagrante, mas pagou fiança e foi liberada

Neste domingo (20), Dia da Consciência Negra, a advogada Mariana Lopes será uma das homenageadas no Ciclo de Debates sobre a População Negra em Curitiba, no Solar da Cultura. A ocasião que seria de reconhecimento aos esforços para uma cidade menos racista, será mais um capítulo na luta por respeito para a advogada que nesta semana foi vítima de racismo enquanto trabalhava.

Na última quarta-feira (16) Mariana foi até a rua Cândido Lopes, centro da capital paranaense, para agendar uma perícia no INSS para uma cliente. A advogada acompanha o caso há três anos e desta vez optou por ir pessoalmente ao local para dar mais celeridade aos trâmites.

Logo que chegou ao prédio e pediu para falar com a servidora Catia Yoshida, responsável pelo atendimento nestes casos, houve hostilidade. Instantes antes, por telefone, Yoshida disse que não agendaria nada e tampouco atenderia a advogada.

No local, quando Mariana apresentou sua identificação profissional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), foi vítima do primeiro ataque. “Não sabia que preto podia ser advogado”, disse Yoshida, conforme contou a advogada ao Plural.

Apesar do ataque racista, a advogada continuou o procedimento para atender a cliente e pediu para que a perícia fosse agendada. A servidora novamente disse que não faria e mandou a própria Mariana anotar a mão outros lugares para que a consulta fosse marcada.

“Aí eu disse que não anotaria a mão e pedi uma certidão assinada e carimbada com os locais, dentro do que prevê a Lei. Mas ela disse que não ia fazer porque eu era preta”.

Uma estagiária negra que estava no local começou a chorar. A Polícia Militar (PM) foi acionada, bem como representantes da OAB e uma equipe de televisão.

Racismo

Quando a equipe da PM chegou ao endereço foi informada por funcionários de que as pessoas envolvidas no episódio racista não estavam mais no local – uma mentira. Os policiais foram novamente chamados e prenderam Yoshida em flagrante. O caso foi encaminhado para a Polícia Federal (PF).

A estagiária, conforme levantou o Plural, deve ser remanejada de setor porque de acordo com testemunhas foi coagida a não corroborar o crime racial em depoimento.

A reportagem tentou ouvir o procurador que acompanha Yoshida no caso, mas foi orientada a procurar a assessoria de imprensa da advocacia-geral da União, que ainda não respondeu aos questionamentos sobre o comportamento racista da servidora.

Yoshida foi presa em flagrante, mas na Polícia Federal o crime foi enquadrado como “injúria racial”, que, diferente de racismo, é passível de fiança. Depois de um dia da carceragem a acusada pagou R$ 3,5 mil e foi liberada.

Repercussão

A situação grave de racismo tomou grandes proporções. Mariana Lopes, além de advogada, é deputada federal suplente pelo PSB, que emitiu uma nota repudiando a situação. “O PSB manifesta seu repúdio contra o ato de racismo sofrido (…) reiteramos nosso apoio à advogada Mariana Lopes (…)”, diz um trecho do documento, assinado pelo presidente do partido Luciano Ducci.

A Associação Brasileira das Mulheres de Carreira Jurídica (ABMCJ) também condenou o ataque,  lembrou que representantes da Comissão de Prerrogativas da OAB-PR esteve no local e criticou a incursão do crime como injúria e não racismo.

“Entretanto a ABMCJ entende se tratar de conduta nitidamente racista que, além de afetar direta e individualmente a advogada Mariana Lopes, atinge todos, em especial a população negra.

Esclarece-se ainda que o crime de injúria racial consiste em ofender a honra de alguém se valendo de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem, e o crime de racismo atinge uma coletividade indeterminada de indivíduos, discriminando toda a integralidade de uma raça (…)

Assim sendo, o ataque nitidamente racista não violou apenas a honra da nossa associada, a advogada Mariana Lopes, mas sim, de todas(os) as(os) advogadas(os) e demais profissionais negras(os), nas diversas áreas de atuação no mercado de trabalho”, aponta o documento, assinado pela presidente nacional da ABMCJ, Alice Bianchini.

A Defensoria Pública da União e o Ministério Público também estão acompanhando o caso, que tomou grande repercussão, já que a vítima é uma das mais renomadas advogadas criminalistas do país.

A Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim) afirmou, em nota, que a servidora além de agir de forma racista, também “ofendeu e humilhou a honra da vítima, cerceando direito fundamental”.

Mudanças

Desde quarta-feira (16) Mariana Lopes, que é professora no ensino superior e está em vias de defender a dissertação do mestrado na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC) teve a semana transformada.

A programação era atender a cliente, terminar de preparar aulas, se preparar para a defesa e comemorar aniversário de uma das filhas, que é neste sábado (19), virou um emaranhado de depoimento à PF e entrevistas sobre o caso grave de racismo que sofreu justamente no mês da Consciência Negra.

A homenagem que receberá neste domingo (20), data do aniversário de morte do líder Zumbi dos Palmares, é mais uma situação que lembra que a luta por direitos é permanente. “Eu pensei em deixar pra lá, mas ao mesmo tempo refleti que se defendo tanta gente em situações como esta, como eu mesma não poderia levar em frente? Eu gosto muito daquela frase da Angela Davis que diz ‘Não aceito mais as coisas que não posso mudar. Estou mudando as coisas que não posso aceitar’, e gostaria de terminar com ela”.

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5 comentários em ““Não sabia que preto podia ser advogado”, diz servidora do INSS para advogada em Curitiba”

  1. nossa!!! inacreditável !!! isso é inadmissível. se não acontecer NADA com quem cometeu esse tipo de crime( óbvio que foi racismo )então perco a credibilidade na justiça!!!

  2. Absurdo e lamentável esse fato. Que essa servidora que não serve seja punida. Infelizmente, dentro do INSS tem pessoas de péssimo caráter e de má índole, que maltratam as pessoas que dependem dos serviços da autarquia.

  3. Boa noite!
    Infelizmente não vai acontecer nada com essa servidora. Sou servidora do INSS, negras, já passei por situações difíceis de discriminação que acabei levando a chefia e, apenas justificam dizendo que é coisa da minha cabeça.
    Essa advogada não está faltando com a verdade, existe servidores que discriminam os demais dentro da Instituição e, não acontece nada, não existe ações educativas para debater o tema. Os dirigentes não se importam, ademais, já presencie situações de conflitos entre pessoas de cor e servidores brancos, onde mesmo com a razão foram desacreditados, pressionados e, alguns acabaram se afastando do trabalho por stress.
    Outra situação que foi absurda, em um encontro técnico de servidores da área contábil, ao final, servidores da região sul não queriam que os colegas da região norte e nordeste participassem da confraternização, apesar do conflito, nenhum supervisor se manifestou contra a situação, muitos fizeram piada.
    Espero que algo seja feito com essa servidora, mas é quase certo que não.

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