Humildade epistêmica e o sentido da maravilha

Reconhecer a maravilha das pequenas coisas é manter uma atitude de humildade epistêmica, de modéstia diante daquilo que não conhecemos, de pudor e compostura diante daquilo que existe

Lisa H. Sideris, no seu livro “Consagrando a Ciência: maravilha, conhecimento e mundo natural”, de 2017, apresenta a maravilha como um estado que pode ser tanto infantil quanto científico, tanto agradável quanto aterrorizante. Trata-se de um estado de fronteira, entre o misterioso e o científico ou, melhor ainda, de uma experiência na qual o mistério abre caminho para o científico. Nisso, como se sabe, reside a glória da Filosofia, em seus começos.

Para filosofar é preciso, afinal, alcançar o estágio da criança, como sugeriu Nietzsche no primeiro discurso de seu “Assim Falou Zaratustra”: “inocência é a criança; e esquecimento; um novo começo, um jogo, uma roda a girar por si mesma, um primeiro movimento, um sagrado dizer-sim”.

Nietzsche, com essa metáfora, traduz a origem da filosofia, como esta foi definida por Sócrates ou por Aristóteles, diante do maravilhamento. Para ele, só alcança tal inocência quem viveu as três metamorfoses do espírito, cujo ápice é a conquista da capacidade de criação. Nenhum criador vive de coisas velhas, mas, antes, demanda a novidade que só a condição da maravilha pode oferecer. Como sugere Sideris, uma tal condição se expressa como oposição ao desejo de controlar o mundo, própria, na linguagem nietzschiana, dos adultos e velhos que, em contraste com a inocência da criança, usar a força não para criar, mas para conservar estruturas carcomidas e impedir o surgimento do novo: “a ambivalência ou o medo evocado pela maravilha pode ser encontrado com o desejo de controlar e domesticar o mundo, de ‘isolá-lo sistematicamente contra a intrusão do estranhamento'”.

Ao distinguir a maravilha (como experiência) das maravilhas (promovidas pelos objetos), Sideris não deixa de incluir as plantas como alguns desses objetos capazes de despertar a experiência do maravilhamento. Para a autora, a ciência e a tecnologia investiram na chamada dessacralização do mundo, mas o resultado desse processo foi o domínio, a exploração e, no limite, a destruição da natureza.

Ocorre que, sem a capacidade da maravilha, o ser humano fica entregue à racionalidade técnica que tudo quer dominar, deixando de lado a capacidade de maravilhamento, que inclui a capacidade de olhar com vagar e com ternura para as coisas mais simples que são, geralmente, as mais importante da existência. A natureza, poderíamos dizer, tem sido a vítima desse modo de ver as coisas, na medida em que muitos seres entram na lista de extinção das espécies pelo mero fato de que não são olhados com a atenção que mereciam, não são compreendidos do modo como deveriam. A verdade é que a ciência muitas vezes não sabe formular as perguntas certas para compreender o fenômeno da vida. Com perguntas erradas, as respostas são geralmente incompletas.

Quem reparou nessa questão foi o biólogo Andreas Weber, que trabalhou com ninguém menos do que Francisco Varela, o renomado biólogo chileno que, junto com Humberto Maturana, criou o conceito de autopoiesis natural. Seu livro, de 2016, tem como título “A biologia da maravilha: vivacidade, sentimento e metamorfose da ciência”. O seu esforço também é chamar atenção para a capacidade que temos de olhar para a natureza com os olhos mais adequados, vendo o que precisa realmente ser visto e não apenas calculando e encaixando a vida nas fórmulas previamente estabelecidas da linguagem lógica e matemática que a tudo devora. O livro de Weber é, ele mesmo, a demonstração de uma maravilha, na medida em que ele chama atenção para a vivacidade da vida em todas as suas capacidades funcionais, autocriativas e autogeradoras.

Para ele, a vida é constantemente cocriadora de mundos. A “vivacidade” de toda a vida, emocional, senciente, interessada, misturada, “emaranhada com toda a vida”, nos reorienta científica, poeticam e moralmente, para fora do reducionismo cuja insuficiência levou à catástrofe que vivemos hoje em termos de mudanças climáticas e crise ambiental em geral.

Segundo Sideris, inspirada em William James, a atitude do maravilhamento é caracterizada pelas ideias de “abertura, disponibilidade e humildade”. Isso me faz pensar em um objeto de estudo filosófico que me ocupa atualmente, as plantas, essas vítimas do antropocentrismo e do zoocentrismo, esses “parentes pobres da biologia”, entidades “subalternas” ou “grandes esquecidos” da história do conhecimento. O velho Rousseau, enquanto coletava plantas para o seu herbário, ainda hoje guardado em Montmorency, próximo a Paris, tinha a sensação de que as plantas são mesmo o espelho do ser ou, como afirmou Emanuelle Coccia, o “paradigma do vivente enquanto tal”: “je vais devenir plante moi-même un de ces matins, et je prends déjá racine à Motiêrs”.

No geral, minha defesa é que, se uma das características de nosso tempo é a quebra dos vínculos com o mundo (algo que se alonga na trajetória do gnosticismo que Hans Jonas identificou na filosofia contemporânea, cuja premissa é a hostilidade e, mais, a indiferença em relação à natureza), as plantas dão expressão a um novo tipo de vínculo, cujo princípio é a maravilha. As plantas, que vivem uma onda de extinção sem precedentes, embora sua presença seja exuberante, evocam o paradoxo entre a maravilha e o domínio.

Compreendidas pelas lentes da ciência natural que tudo pretende decifrar, as plantas se tornaram os alvos do capitalismo que as torna meros objetos nas mãos dos laboratórios de genética ou das grandes fazendas de monocultura. As plantas são os primeiros seres tornados vítimas do capital. Mas são elas também que nos oferecem a chance de resgatar a experiência da maravilha, como experiência do encontro com o essencial que também está em nós, ou seja, a capacidade de olhar com ternura e, consequentemente, de cuidar para que a vida seja preservada. E ao fazê-lo, estamos recuperando a humildade de quem rompe com a ideia de que o ser humano é o senhor de tudo e por isso pode agir contra tudo.

Reconhecer a maravilha das pequenas coisas é manter uma atitude de humildade epistêmica, de modéstia diante daquilo que não conhecemos, de pudor e compostura diante daquilo que existe. Uma tal atitude nos impedirá de explorar e esgotar a natureza tal como estamos, infelizmente, tentados a fazer o tempo todo, no nosso afã de mercantilização da vida. a verdade é que em vez de cultivar uma ética de respeito à natureza, a ciência moderna incentiva a arrogância humana, a reverência acrítica a verdades pretensamente absolutas e a indiferença em relação à vida não-humana.

Explorando sensibilidades morais enraizadas na experiência do mundo natural, Sideris mostra como um senso de maravilha pode fomentar atitudes ambientais que protegerão nosso planeta do colapso ecológico que se avizinha. Vamos começar olhando as flores que estão no nosso jardim?

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