Críticas e mudanças afetam consistência de edital que coloca empresas para gerir escolas no Paraná

Programa é visto como privatização das escolas do Paraná. Governo fala em apoio e garante autonomia

A proposta do governo do Paraná para colocar a iniciativa privada na gestão de escolas da rede pública enfrenta instabilidade antes mesmo de sair do papel. Desde que foi publicado, há mais de um mês, o edital passou por mudanças, foi repreendido, virou tema de audiência calorosa na Assembleia Legislativa, até ser definitivamente anulado e substituído por outro texto na noite de quinta-feira (10).

Não houve justificativas oficiais para a modificação, anunciada às vésperas de folga prolongada no Executivo estadual e apenas dois dias depois de a Secretaria de Estado da Educação (Seed) admitir ter fracassado ante a primeira tentativa de trazer a iniciativa privada para dentro da rede pública, por meio da qual o grupo de ensino Unicesumar passou a ministrar aulas no novo Ensino Médio.

O novo documento mantém na estrutura central a cessão da responsabilidade administrativa de 27 escolas estaduais ao setor privado, em uma primeira fase de testes, mas reduz a marcha da corrida ante a avalanche de críticas direcionadas nas últimas semanas contra o modelo, acusado de ser mais uma manobra para terceirizar o ensino público no Paraná.

A revisão reduz o risco de uma suspensão do edital por possíveis questionamentos jurídicos – uma expectativa iminente –, mas não diminui a mobilização de movimentos antagonistas à iniciativa. Muitos consideram a medida uma forma de instrumentalizar da educação pública para fortalecer o setor privado, sem indícios de futuras melhorias nas atividades pedagógicas. O governo contra-argumenta. Para a Seed, o debate sobre o modelo, ao qual se refere como “apoio administrativo”, virou “um festival de desinformação” contra a visão da pasta de dar à escola pública o máximo de apoio possível da sociedade.

Terceirização

A medida proposta pela Paraná Educação, entidade de apoio da Seed para a gestão dos colégios da rede pública paranaense e responsável pela implementação do projeto, foi elaborada sob a perspectiva de uma suposta incapacidade do Estado para investir e melhorar o ensino da rede – diante da “realidade enfrentada pela Seed em fazer a gestão de uma rede de ensino com mais de 1 (um) milhão de estudantes distribuídos em 2.109 (duas mil, cento e nove) escolas”. Em linhas gerais, o Executivo passa a defender o aspecto “descentralizador” e “direcionado” da iniciativa como uma forma de aprimorar as práticas dentro dos colégios.

A intenção mira, sobretudo – como afirma o próprio edital –, no alcance das metas do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), avaliação nacional institucionalizada para medir a qualidade de ensino no país e abraçado como vitrine pela política educacional de Ratinho Jr. Uma controvérsia na avaliação de especialistas, que apontam a elaboração de um caminho artificial para chegar ao topo dos indicadores e a desconsideração com os propósitos universais do ensino escolar, muito além dos indicadores.

Pelas regras definidas, as futuras contratadas receberão R$ 800 por aluno matriculado e poderão ser bonificadas em R$ 100, também por estudante, se atingidas as metas de desempenho e frequência estabelecidas. Nas futuras unidades geridas dentro do projeto – nove delas em Curitiba, 11 na Região Metropolitana e 7 no interior, alunos não poderão ser reprovados por dois anos consecutivos. A taxa de aprovação é um dos componentes do cálculo do Ideb.

Contra a Constituição

Estudo recente elaborado por pesquisadores na Universidade Federal do Paraná (UFPR) com o objetivo de correlacionar aspectos do direito humano à Educação já chegou a demonstrar que a entrada de atores privados no sistema público de ensino a fim de promover estratégias para aprimorar desempenhos em avaliações ignora o cumprimento da prerrogativa constitucional do “pleno desenvolvimento do ser humano, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.

A pesquisa explorou dados e microdados de três programas específicos de transferência da gestão do ensino à iniciativa privada no Brasil – Pernambuco, Pará e Goiás – e relacionou o encolhimento de matrículas no Ensino Médio verificado em dois dos projetos a uma espécie de seleção nas escolas, à medida que o progresso no desempenho dos sistemas de avaliação foi proporcional à melhora das condições sociais e econômicas dos estudantes.

“Uma das coisas que a gente percebeu foi que, quanto mais tempo o programa vai ficando nessas redes, temos uma exclusão dos adolescentes mais pobres. O índice socioeconômico melhora justamente porque vão expulsando os alunos mais pobres, e a nota Saeb [Sistema de Avaliação da Educação Básica, com peso na fórmula do Ideb] melhora mais provavelmente por essa condição socioeconômica do público que frequenta a escola”, afirma Cassia Domiciano, uma das autoras do texto, publicado no livro “Venture Philanthropy and the Human Right to Education”, lançado este ano pela Associação Nacional de Política e Administração da Educação (Anpae).

Sorteio

No Paraná, a tentativa inicial do governo foi de impor seleção às matrículas nas unidades contempladas pelo projeto. A primeira versão do edital previa a adoção de sorteio para o ingresso de novos alunos nas escolas, ponto do qual a equipe do secretário de Educação Renato Feder teve de abrir mão diante da pressão que chegou ao Palácio Iguaçu. Ao pacote, especialistas e membros da comunidade escolar adicionaram uma série de outros questionamentos levados a uma audiência realizada na Assembleia Legislativa em que se debateu a suposta falta de garantias legais da iniciativa.

Na semana passada professores do setor de Educação da UFPR e do programa de pós-graduação do mesmo departamento lançaram uma nota pública em que apontaram inconsistências jurídicas a proposta central do governo. O texto cita desrespeito à constituição por ferir “de maneira direta o princípio da gestão democrática da escola pública” e o “princípio de organização do sistema educacional brasileiro” e também um ataque à garantia prevista pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de autonomia pedagógica, de gestão financeira e administrativa às instituições de ensino. “O credenciamento de empresas educacionais afronta novamente esta regra e nega a própria relação entre a gestão da SEED e as equipes gestoras das escolas, além ferir o art. 213 da Constituição Federal de 1988 que proíbe o repasse de recursos públicos a instituições privadas de natureza lucrativa”, diz a nota.

Docentes do Departamento de Educação, Comunicação e Artes (CECA) da Universidade Estadual de Londrina (UEL) também se posicionaram contrariamente, alegando que a proposta “desresponsabiliza o Estado da sua função social no atendimento e na gestão da demanda de escolarização de crianças, jovens, adultos e idosos, destitui os fins públicos da educação básica, dissemina a gestão gerencialista e meritocrática da educação pública”.

Entidade representativa dos professores da rede estadual, a APP Sindicato alertou a falta de garantia do ensino noturno e de atendimento especializado a alunos com necessidades educacionais especiais nas escolas, além de uma nova modalidade de subcontratação de professores. O documento permite que docentes, pedagogos e outros profissionais hoje contratados pelo estado no regime de Processo Seletivo Simplificado (PSS) sejam repostos pela empresa privada gestora. Na audiência pública organizada por deputados da oposição na última segunda-feira (7), a entidade afirmou não ter conseguido acesso aos pareceres jurídicos integrados ao trâmite.

Preparativos

O governo determinou que grupos privados selecionados para assumir as gestões serão submetidos à validação da comunidade escolar, embora pais, responsáveis, professores e alunos não tenham sido convocados para debater o tema ao longo da elaboração do documento, que tem quase 3 mil páginas.

Desde o fim do mês passado, as 27 escolas selecionadas já vinham recebendo visitas de representantes de grupos educacionais, entre eles as redes paranaenses Marista e Acesso, além de pessoas jurídicas de fora do estado. Segundo apurou a reportagem, a Seed não chegou a realizar reuniões formais com os diretores das unidades para tratar sobre a mudança, embora em uma pesquisa informal eles tenham sido consultados se achariam bom contar com uma estrutura de apoio para ajudar na administração dos colégios.

Docentes e diretores temem que a gestão pedagógica passe a ser submetida ao crivo das empresas. E também não veem com bons olhos que a consulta a pais e responsáveis sobre a adesão das escolas definidas seja apenas a parte final de todo o processo, a que juntam estudiosos da área.

“O que pesa muito neste projeto todo é a marca da escola. Isso é uma grande jogada e não me parece ser à toa que a última parte deste edital é a consulta às escolas. Você já leva a empresa educacional que tem uma grande marca para vender às famílias essa grande ideia de que seus filhos terão as mesmas oportunidades dos filhos da elite. Mas o que se esconde é que o público que está dentro destas escolas privadas é completamente diferente”, diz Domiciano.

Autonomia garantida

A nova versão do edital publicada pela Seed estende até 10 dezembro as inscrições dos grupos interessados em se credenciar ao programa, batizado de “Parceiro da Escola”. O prazo inicial era 3 de novembro. A consulta à comunidade escolar será entre os dias 5 e 7 de dezembro, e assinatura dos contratos, na penúltima semana do ano.

Ao Plural, a secretaria negou que a alteração no edital tenha ocorrido por falta de submissão da proposta ao Conselho da Paraná Educação, embora não tenha explicado o motivo.

Em nota, rebateu críticas alimentadas contra o modelo, afirmando que a autonomia pedagógica, financeira e administrativa não será impactada e que as empresas contratadas servirão apenas para prestar apoio especializado. “Mas a decisão final, como não poderia ser diferente, segue sendo do diretor responsável pelo colégio”, diz a pasta.

O texto ainda contesta a informação de uma possível fragilidade constitucional do programa, a começar pela suposta infração ao artigo que proíbe o repasse de recursos públicos a instituições privadas de natureza lucrativa. Por esta lógica, afirma, uma série de políticas públicas implementadas ao longo das últimas décadas poderia ser considerada ilegal, como o Pronatec e o Prouni.

O governo diz entender que fomentar a entrada de empresas privadas na educação pública é uma forma de “colaborar com o Estado em nome da aprendizagem dos estudantes e da redução da evasão” e que “deixar a educação à margem da ciência prejudicou a aprendizagem de milhões de estudantes no passado e impediu a formulação de políticas públicas eficazes para aumentar a alfabetização e expandir o ensino técnico, para ficar em apenas dois exemplos”.

Sobre as críticas ao peso dado ao Ideb, a Seed defendeu o uso de metas e indicadores para medir a qualidade do serviço prestado pelo Estado. “Um exemplo bastante debatido recentemente, inclusive pelo Plural, foi sobre a cobertura vacinal brasileira. Foi criada uma série de indicadores por estados e municípios para atingir a totalidade da população, inclusive com estratégias específicas para grupos etários”, afirma a nota a partir de um ponto de vista quantitativo.

As escolas selecionadas

Curitiba

João Paulo I
Alcyone Vellozo
Anibal Khury Neto
Gelvira Correa Pacheco
João Wislinski
Natalia Reginato
Olivio Belich
Orione
Santo Agostinho

RMC

Alberto Krause – Almirante Tamandaré
Helena Kolody – Colombo
Heraclito F Sobral Pinto – Colombo
Zumbi dos Palmares – Colombo
Leocadia B Ramos – Pinhais
Anita Canet – Fazenda Rio Grande
Lucy Requião M e Silva – Fazenda Rio Grande
Arnaldo Jansen – São José dos Pinhais
Ipe – São José dos Pinhais
Silveira da Motta – São José dos Pinhais
Tancredo Neves – Almirante Tamandaré

Interior

Lucia B Lisboa – Londrina
Olympia M Tormenta – Londrina
Rina M de Francovig – Londrina
Roseli Piotto Roehrig – Londrina
Francisco Pires Machado – Ponta Grossa
Nossa Senhora da Gloria – Ponta Grossa
Osório – Ponta Grossa

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