Caso de empresa do Paraná decide se Brasil vai liberar cultivo de cânhamo

Produto vem da cannabis, mesma planta da maconha, mas pode ser liberado por não ter nenhuma relação possível com a fabricação de droga

Ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) aceitaram recurso especial para deliberar sobre a viabilidade de importação e cultivo do cânhamo no Brasil. A discussão foi desencadeada por uma empresa do Paraná especializada no desenvolvimento de sementes e engenharia genética vegetal, que quer plantar a variedade em grande escala para atender demanda da indústria, sobretudo a farmacêutica. Ao decidir pela admissão do incidente de assunção de competência (IAC) – mecanismo acionado na apreciação de temas de grande repercussão –, a Corte assume explorar uma camada do debate ainda bastante hostil e buscar um posicionamento a respeito da tese segundo a qual o hemp, nome popular do cânhamo industrial, não tem propriedades entorpecentes e, portanto, sua exploração não deveria ser limitada pelo arcabouço jurídico antidroga.

A decisão da Primeira Seção do STJ pelo acolhimento do IAC foi unânime e, até novo posicionamento, suspendeu em todo o país a tramitação das ações individuais ou coletivas que discutem a possibilidade de autorização para importação e cultivo de variedades de cannabis para fins medicinais, farmacêuticos ou industriais. A postura indica, para representantes do setor, uma possibilidade de mudança real no debate, a começar pela abordagem técnica de um tema ofuscado pelo estigma.

Cannabis e cânhamo

A relatora, a ministra Regina Helena Costa, acatou apelo da DNA Soluções em Biotecnologia, sediada em Mandirituba, na região metropolitana de Curitiba. A empresa alegou que o acórdão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) não esgotou a questão de direito fundamental atrelada ao pedido, baseada em parâmetros quimiotaxonômicos sem capacidade de gerar efeitos entorpecentes.

Embora derive da mesma espécie da maconha – a Cannabis sativa –, o cânhamo tem propriedades distintas da variedade usada como droga. A principal diferença está na sua composição química, cujo teor de tetrahidrocanabinol (o THC, responsável pelos efeitos psicotrópicos) é limitado a 0,3%. No uso associado à maconha, a concentração média chega a 15%, de acordo com estudos recentes do Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos. Por outro lado, o hemp é capaz de produzir altos índices de CBD, canabinoide usado na fabricação de fármacos para tratar doenças como epilepsia e esquizofrenia, além de ser matéria-prima explorada por outros tipos de indústria em todo o mundo.

A empresa paranaense afirma que, ao confirmar decisão anterior da Justiça Federal do Paraná (JFPR), o TRF4 não teria considerado as particularidades do cânhamo ressaltadas no pedido, mesmo após esgotadas todas as apelações. Ao STJ, submeteu, então, recurso para que a planta seja reconhecida como variedade com baixo teor de THC, incapaz de ser utilizado na fabricação de drogas e, por isso, não deve ser enquadrada pela vedação legal vigente. Um posicionamento favorável dos ministros abriria caminho à autorização sanitária requerida para cultivar o hemp industrial e vender para diferentes setores da indústria partes da planta ainda de forma natural, como fibras, folhas e sementes, ou já processadas, em forma de óleo, por exemplo, sob fiscalização.

O acórdão do TRF4 que negou a autorização buscou respaldo nas normas e regulamentações derivadas da Portaria 344 de 1998 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O ato administrativo, base da Lei de Drogas de 2006, proíbe no Brasil a importação, a exportação, o comércio, a manipulação e o uso das plantas com capacidade de originar substâncias psicotrópicas e foi concebido no ritmo de orientações proibicionistas adotadas globalmente em décadas anteriores e que deram origem a convenções internacionais sobre entorpecentes, redigidas como um marco saúde pública, das quais o país é signatário.

Cannabis medicinal

Apesar de a Cannabis sativa seguir listada como proibida, o reconhecimento do caráter medicinal da planta pela própria Anvisa flexibilizou a incorporação de derivados específicos no receituário controlado brasileiro nos últimos anos.

Em 2015, resolução da autarquia estabeleceu normas para importação excepcional de medicamentos à base de canabidiol. Um ano depois, a Cannabis medicinal deixou o quadro de proibidos e migrou para a lista de substâncias de controle especial da portaria 344, atualização que precedeu permissão de 2019 para fabricação e comercialização de fármacos à base de derivados da planta. A primeira autorização foi concedida à farmacêutica paranaense Prati-Donaduzzi, de Toledo. No fim do ano passado, o Instituto de Tecnologia do Paraná (Tecpar) anunciou acordos de cooperação técnica que preveem a transferência de tecnologia para a produção da cannabis medicinal. A proposta é dar mais alternativas ao mercado brasileiro, embora a matéria-prima de todo o processo tenha de ser exportada de países onde o cultivo do cânhamo e da maconha é permitido.

No caso levado ao STJ, a empresa com sede em Mandirituba diz haver impacto da burocracia da importação do extrato de CBD no preço das mercadorias comercializadas nas farmácias do país. Em novembro do ano passado, levantamento da Cannect, rede medicinal de Cannabis, feito em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e divulgado pela Folha de S. Paulo, mostrou que o custo médio para o tratamento de dor crônica à base do CBD encolheu, mas ainda supera o valor mensal de R$ 350. Conforme a Organização das Nações Unidas (ONU), o preço do óleo de CBD bruto no mercado europeu chegou a US$ 931 por quilo em novembro de 2021.

Em 2023, lei do uso da cannabis medicinal foi promulgada na Assembleia Legislativa do Paraná. Novas regras facilitam acesso de pacientes aos fitomedicamentos. Foto: Orlando Kissner/ Alep

Em julgamento

A admissão do recurso pelo Superior Tribunal também levou em conta posicionamento da fabricante de sementes, para quem seria um “contrassenso danoso à indústria nacional” o fato de já ser possível a importação do canabidiol extraído do plantio de hemp no exterior, mas ainda seguir vedado o cultivo da planta no país. À Corte, a empresa alegou que ser “impedida de exercer atividade econômica relativa à industrialização de subprodutos de variedade de Cannabis cujo cultivo não permite a produção de entorpecentes” é uma ofensa à Lei de Liberdade Econômica, editada em 2019. O questionamento também deverá entrar na discussão dos ministros.

A sentença do TRF4 contrária à autorização sanitária requerida pela DNA Soluções não aborda aspectos econômicos do debate, mas retoma pareceres de ação anterior de mesmo propósito impetrada por outra empresa do Paraná, endereçada em Morretes, no Litoral. No processo, o juiz Alexandre Gauté, da 1ª Vara Federal de Paranaguá, considerou o posicionamento da União de que os procedimentos administrativos em vigor são eficazes para atender a demanda e permitem controle das importações de CBD e THC, o que não ocorreria em caso de cultivo em escala industrial para fins comerciais.

O veredito do Tribunal da 4ª Região replica ainda o entendimento sobre a autorização para exploração industrial da Cannabis sativa como “matéria de natureza eminentemente política, que fica, portanto, na dependência de deliberações dos Poderes Legislativo e Executivo”. “Uma intervenção do Poder Judiciário nesse campo, da forma como pretendida pela autora, cujo pleito, repita-se, não se restringe a casos isolados nem a obrigar as rés a deliberarem sobre o tema, feriria o princípio da separação dos poderes”, diz o voto da desembargadora federal relatora do caso da DNA Soluções, Vivian Josete Pantaleão Caminha.   

Em manifestação, o Ministério Público Federal (MPF) se opôs ao recurso sob entendimento de que TRF4 manifestou-se sobre todas as teses. A Subprocuradoria-Geral da República reconheceu a validade da discussão do tema por outras iniciativas, inclusive no Supremo Tribunal Federal (STF), mas defendeu que a adoção de políticas públicas voltadas à promoção da saúde e redução de agravos provocados por doenças é uma prerrogativa do Executivo e do Legislativo, até mesmo por se tratar de uma questão ampla que, se validada, requer o envolvimento de diferentes setores do Estado.

“Insta salientar que uma decisão desse tipo depende do estudo de diversos elementos relativos à extensão do cultivo, número de espécimes suficientes para atender à necessidade da recorrente, mecanismos de controle da produção do medicamento, dentre outros fatores, cujo exame escapa ao conjunto de competências técnicas do magistrado. Essa incumbência está a cargo da própria Agência Nacional de Vigilância Sanitária que, diante das peculiaridades do caso concreto, poderá autorizar ou não o cultivo e colheita de plantas das quais se possam extrair as substâncias necessárias para a produção artesanal dos medicamentos”, posiciona o MPF.

Cannabis a fundo

A deliberação do STJ de aceitar o recurso especial elaborado pela empresa de biotecnologia de Mandirituba sinaliza, por outro lado, pretensão da Justiça de se aprofundar no debate.

Hoje, já existe orientação jurisprudencial das turmas que integram a 3ª Seção da Corte no sentido de autorizar o plantio de Cannabis por pessoas físicas, para fins medicinais, viabilizando a extração de substâncias necessárias à produção de medicamentos artesanais prescritos por profissionais de saúde. Agora, o Tribunal avança no tema ao aceitar avaliar se a vedação ao cultivo e à exploração de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas, prevista na lei 11.343 de 2006, deve ou não englobar culturas que produzem concentração de THC em teores mínimos e, por isso, não usadas em associação a entorpecentes.

Em nota divulgada à imprensa, a DNA diz que o parecer levado ao Superior Tribunal de Justiça congrega conteúdo acumulado por anos de pesquisa na área de farmacologia, bioquímica, segurança ambiental, sustentabilidade e impacto social. “Nosso objetivo é produzir um produto com preços acessíveis, proporcionar acesso dos que mais precisam, possibilitar pesquisas científicas, dar suporte às associações de pacientes, promover empregos e renda, tornando o Brasil um grande agente global na utilização dessa planta para fins medicamentosos, industriais e energéticos”, afirma.

Para a Associação Nacional do Cânhamo Industrial (ANC), o envolvimento da Justiça na discussão sobre a possibilidade do cultivo do hemp no país, baseada em critérios técnicos, dá maturidade ao debate. Segundo a entidade, a admissão do recurso também deve agilizar discussões paralelas da temática, em curso no Legislativo e também no Poder Judiciário.

O Supremo Tribunal Federal analisa desde 2017 a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5708 para modificar a Lei de Drogas de 2006 e descriminalizar a plantação, o cultivo e a compra da Cannabis para uso terapêutico. A mesma legislação é debatida no Congresso por diferentes inciativas. Uma delas é o PL 399 de 2015, sob relatoria do deputado paranaense Luciano Ducci (PSB), que descriminaliza o plantio de plantas com até 1% de THC para fins medicinais; outra, o projeto de lei 4.776 de 2019, trata sobre o uso da Cannabis sativa com fiscalização da Anvisa e sob supervisão do SUS.

“Ficamos contentes com essa decisão porque, além de ela discutir um tema relevante, e além dos méritos próprios de se ter uma questão como essa sendo discutida em nível nacional, ela entra como catalisadora para outros agentes dessa tomada de decisão se movimentarem também. Acho muito provável ver uma reação do legislativo não querendo perder protagonismo diante dessa decisão”, Rafael Arcuri, diretor-executivo da ANC.

Alternativa

Apesar de o uso farmacológico da Cannabis ser o que mais desperta debates ao redor do mundo, plantações de cânhamo têm ganhado cada vez mais relevância econômica por ser capaz de abastecer diferentes categorias da indústria. Por isso, projetos que tratam da exploração da commodity, com a prerrogativa de baixo teor de THC, passaram a ser atrativos para setores interessados em viabilizar fontes alternativas de arrecadação mesmo em economias mais consolidadas.

A China lidera a produção mundial em um sistema voltado, sobretudo, para a exploração da fibra da planta, bastante resistente. Nos Estados Unidos, grande produtor do hemp no século XIX, o Senado resgatou a legalidade do cultivo em 2018 após 80 anos de proibição. Na década de 1990, Austrália, Reino Unido, Alemanha e Canadá foram algumas das nações onde o cultivo havia sido retomado. A Organização das Nações Unidas contabiliza, hoje, cerca de 40 países com produção significante do cânhamo industrial, atrelados a um mercado em ascensão, segundo a entidade, “principalmente por razões econômicas, impulsionadas pela necessidade geral de encontrar novas e lucrativas culturas e materiais naturais em resposta à crescente demanda dos consumidores por produtos mais sustentáveis”.

O Departamento Nacional de Agricultura norte-americano calcula que o valor da produção da variedade no país em 2021 totalizou US$ 712 milhões, com 87,5% da arrecadação pelo cultivo para fins terapêuticos. A plantação para exploração da fibra chegou a US$ 41,4 milhões, e de sementes, US$ 41,5 milhões. Conforme dados da ONU, dois anos após retomar o cultivo, o país se tornou o terceiro maior exportador de produtos da indústria do hemp, atrás apenas da França e da China.

Na Europa, o cultivo do cânhamo está espalhado por quase todo o continente e passou de uma área de 19.970 hectares em 2015 para 34.960 hectares em 2019, de acordo com a União Europeia. No mesmo período, a produção cresceu quase 65%, dando ainda mais visibilidade ao mercado francês, que concentra cerca de 70% de toda a produção da UE, seguido pelos Países Baixos (10%) e Áustria (4%).

Na América Latina, o negócio também se expande, embora mais lentamente. Conforme a Associação Latino-Americana do Cânhamo Industrial (Laiha), Paraguai, Uruguai, Equador, Chile e Colômbia são países da região que já permitem a exploração da variedade sob determinadas condições e modalidades. Mergulhada em uma das maiores crises inflacionárias de sua história, a Argentina está prestes a regulamentar a manufatura a partir da Cannabis, também de olho no retorno do cultivo do cânhamo industrial – o que isola ainda mais o Brasil da dinâmica traçada pela commoditie. O Ministério do Desenvolvimento Produtivo do país platino projeta algo em torno de US$ 500 milhões em vendas para o mercado interno e US$ 50 milhões em exportação, por ano, com a exploração de derivados medicinais e de outros usos na indústria.  

“O cânhamo tem a possibilidade de outros usos industriais. Quando a gente pensa só no uso do bioplástico, por exemplo é muita coisa. Quando consideramos o cânhamo como ingrediente de alimento, também, pois tem uso na farinha, como proteína isolada, a semente descascada também é ingrediente e os usos são absurdos”, diz o diretor- executivo da ANC.

Pesquisas e estudos ao redor do mundo têm demonstrado a possibilidade de uso do hemp na indústria de alimentos e bebidas, cosméticos, biodiesel e construção civil. O emprego das fibras da planta no setor têxtil e de papel e celulose é praticamente milenar.

“E isso para o Brasil não é relevante só pela quantidade de dinheiro que seria possível movimentar com o cultivo. Isso é importante também quando a gente fala da indústria de transformação, pois os bens de capital que são utilizados na transformação são diversos, sem contar a parte de serviços. A questão é que essa discussão é muito relevante e está ligada a um mercado muito maior que o medicinal”, afirma Arcuri.

Sobre o/a autor/a

1 comentário em “Caso de empresa do Paraná decide se Brasil vai liberar cultivo de cânhamo”

  1. Leonardo M. de Jesus.

    Excelente artigo da jornalista Angieli Maros sobre a temática do cânhamo industrial no Brasil no que concerne sobre os entraves, impasses e falhas legislativas devido a falta de regulamentação técnica e legal.

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