A vida de quem cresce na Vila é diferente

“Quando é que vai tirar essa gente daqui?” Foi assim que ouvi uma professora universitária se referir a mim e outras crianças da vila

Ser mulher, cis ou transgênero, é um desafio. Ser mulher no Brasil é um pouco mais difícil. E ser mulher periférica no Brasil é sempre estar um degrau abaixo. E isso que ainda falo do meu lugar de mulher branca, que sofre menos preconceitos.

Crescer mulher na periferia de uma cidade como Curitiba não me parecia atípico até que atingi idade o suficiente para entender que nem todas as meninas da minha idade, nos lugares que eu frequentava, sentiam todo aquele desconforto o tempo todo.

Curitiba é uma cidade que, apesar de altamente hostil com quem não segue os padrões das famílias europeias do Sul, ainda veste o disfarce da cidade sorriso. Os ataques direcionados às crianças que vêm da periferia são sutis o suficiente para que não causem alarde, mas definitivamente fortes o suficiente para marcar numa vida inteira.

Não quero que pensem que a violência em Curitiba é velada, pois não é.

“Quando é que vai tirar essa gente daqui?” Foi assim que ouvi uma professora universitária se referir a mim e outras crianças da vila numa aula de campo certa vez. Fomos, minha turma de dança e nossa professora, visitar o laboratório de teatro de uma faculdade de artes e lá fomos guiados por esta professora. A visita terminou pouco tempo depois da fala fatídica, mas a vergonha e o desconforto que aquela professora e sua agressividade completamente gratuitas me causaram permanecem comigo.

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Por definição a vergonha é o sentimento de inadequação e de não-pertencimento, o desconforto de não alcançar qualquer tipo de alvo ou padrão pré-estabelecido.

As sensações de desconforto e deslocamento recorrentes resultam numa vergonha constante – e uma vez que se sente vergonha de quem você é, é incrivelmente difícil voltar atrás. Anos depois, já capaz de analisar minha trajetória, consegui perceber que por anos fui privada de experiências pela sensação de que não pertencia a qualquer lugar fora da Vila. E por isso também negava o meu lugar dentro da minha comunidade e, consequentemente, tudo o que ela poderia me oferecer.

Em certo ponto da minha criação, foi tomada a decisão de sairmos da Vila e hoje vejo que isso também serviu para nos afastar das influências não muito positivas presentes na comunidade, numa idade muito determinante da formação humana, entre os 13 e 17 anos.

Infelizmente, esse tempo fora da Vila me afastou de tudo o que eu conhecia ali, me separando da identidade da vida na periferia. Não era favelada o suficiente para me enturmar com a comunidade, mas fora dali também não havia lugar para mim, afinal continuava sendo favelada.

Fazendo parte de uma geração que conseguiu chegar à universidade, e cada vez mais vem fazendo com que suas vozes sejam ouvidas e consideradas, não é surpresa concluir que independentemente de gênero, sentir-se deslocado é quase que uma característica básica de quem nasce e cresce na periferia. As pessoas não esperam que as crias da periferia sejam capazes de juntar algumas palavras bonitas e complicadas para escrever para um jornal, por exemplo.

Acontece que quando se tem uma base forte numa família matriarcal, como acontece com boa parte das famílias de onde eu venho, é difícil que te tirem o orgulho de ser quem você é, com todas as características do lugar onde nasceu e cresceu. Fui criada por uma rede de mulheres, começando por minha mãe, que trabalha desde os catorze anos e entrava na sala de aula de manhã como professora e à noite como estudante, chegando à minha irmã, que se dividia entre sua própria filha e eu, e também minha avó, que me levava para fazer companhia nas missas da paróquia local.

Hoje considero válida toda a minha vivência, mas há um esforço diário a ser feito para que meu trabalho não seja diminuído pelo CEP da rua onde moro. Longe de mim querer romantizar a vivência dentro da favela – não é nem nunca vai ser bom ver, ouvir e presenciar as coisas que acontecem em lugares onde a Justiça falha e os olhos de quem
deveria cuidar não chegam; mas já que assim aconteceu, o que me resta é continuar juntando palavras bonitas e conseguir que alguém leia – é o meu modo de usar a meu favor tudo que foi feito contra pessoas como eu. Tudo que penso e quero tem o peso das coisas que vivi ali, não consigo me separar da responsabilidade que se carrega ao crescer em comunidade.

Falar sobre pode ajudar, além de mim mesma, as próximas gerações de potências vindas da periferia curitibana.

Este texto faz parte do projeto Periferias Plurais, que convida seis jovens de Curitiba e região a escrever sobre suas vidas e suas comunidades.

Sobre o/a autor/a

11 comentários em “A vida de quem cresce na Vila é diferente”

  1. Mariana, texto incrível!

    Vir da comunidade para a universidade nos coloca em uma posição estranha, de se sentir deslocado tanto nesse novo mundo quanto no lugar em que crescemos. Você descreveu esse processo de uma forma muito boa e me ajudou a lidar e repensar minhas próprias angústias e culpas. Suas palavras tocam novas e velhas gerações periféricas, e nos lembram que não estamos sozinhas/os, e de que temos voz em um dos principais jornais da cidade!

    Obrigado!

  2. A sociedade é naturalmente dividida por castas, e as pessoas são frutos do meio e criam uma identidade cultural. Numa vila pode haver diferentes grupos sociais e culturais.
    O mais importante é que haja oportunidade de mobilidade social e desenvolvimento humano, cresciemento social, cultural e economico.
    Portanto, não se deixar levar pelas frustrações ou sentimento negativos.
    Infelizmente muitas pessoas negam a fé e se colocam contra os princípios religiosos, para viver a suas próprias concupiscência de uma vida dissoluta.

    Veja esta história de uma criança de vila ou de bairro operário:
    Um menino branco de 8 anos, vai sozinho para a escola num dia frio e chuvoso, caminha por uma rua barrenta, sem pavimento, pulando entre poças de água, acaba enxarcando os sapatinhos.
    Chega na escola, encosta embaixo do beiral para se protege da garoa. A zeladora, uma senhora bem gorda, negra, pega a criança pelo braço, leva até o hall de entrada da escola. Ela manda o menino tirar o sapato, e pisar ao lado de uma pegada de um grande pé descalço de adulto.
    Foi um choque de tirar o folego! Quando só então que o menino entendeu que ela suspeitava dele, e quando levantou a cabeça, viu que todos seus amigos o olhavam. Ficou envergonhado, retornou ao beiral, e se encostou na parede, cabisbaixo até dar o sinal de entrada. Não contou nada em casa com medo de que seus pais fossem fazer bronca lá na escola. Naquele ano não conseguiu se sociabilizar com seus colegas da turma.
    Nem por isso o menino se tornou gordo-fóbico ou racista. Seus valores cultivados no ceio da minha família pelos princípios cristãos eram muito maiores que todo mal que poderia haver na sua vida.

  3. Luis Miguel Justo

    Mariana,
    Seu texto me foi trazido pelo seu primo Jacz, orgulhoso que está.
    Como sabe, têm uma biografia similar de jovens criados na periferia.
    Não há romance ali. Realidade sim, distante daqueles da cidade sorriso.
    Obrigado, sinto que a escritora terá muito a dizer com o seu olhar.

  4. Excelente texto Mariana, fico muito feliz de ver seu olhar crítico mas cheio de dignidade! Parabéns à iniciativa do Plural também.

  5. Passei quase toda a infância na vila Santa Efigênia. Desde cedo sempre fui maluco por literatura e a leitura dos grandes clássicos na Biblioteca Pública de Curitiba fazia parte de minha a aventuras. Quando cheguei à universidade no início dos anos 80 já havia percorrido uma longa estrada. No trajeto, minhas referências eram baseadas inocentemente na intuição e numa ou noutra dica que surgia aleatoriamente. Mas foi a partir daí que eu passei a notar que, além das obras indicadas pelos professores, havia alguns textos perturbadores e a maioria deles nem sequer tinha sido traduzida para o português.
    É que a moral e os bons costumes reinavam absolutos durante o regime militar nestas bandas… E, quando não censuravam completamente, inibiam as publicações de textos considerados subversivos ou indecentes. Além disso, o próprio clima na época já era chato suficiente para dificultar o acesso a qualquer coisa escandalosa ou maldita.
    Regular o que podia e o que não podia chegar às mãos de meninos e meninas era uma tarefa levada a sério pelos generais de plantão, a não ser quando se tratava das películas pornô patrocinadas pela Embrafilme. A censura não colava no submundo. Daí a senha era uma carteirinha de estudante dizendo que você era maior de 18 anos e pronto, sua entrada em qualquer filme era automaticamente liberada.
    Para um sujeito da periferia curitibana aquilo parecia bastante contraditório. No entanto, nenhuma lei era mais contundente que o olhar de censura do professor de literatura te surpreendendo com um exemplar de On the road embaixo do braço. Um flagra assim era tão assombroso que podia atropelar até mesmo a alma mais insensível. A frase nunca foi dita, mas estava escrita na cara de meu mestre: Vamos, jogue essa coisa abjeta na primeira lixeira que aparecer na sua frente! Ora, mesmo que tivesse que abrir mão do certificado de honra ao mérito, ninguém iria me proibir de ler a edição de Pé na estrada recém-lançada pela Brasiliense.
    O calhamaço, datilografado originalmente por Kerouac em folhas de papel de telex, só foi chegar ao Brasil em 1984, traduzido por Eduardo Bueno. A capa, que exibia um automóvel conversível em primeiro plano com traços que simulavam uma estrada no meio de montanhas típicas do velho oeste americano, retratava uma paisagem de cartão postal. Era um convite para você embarcar na leitura. Devorei On the road em três ou quatro madrugadas de leitura insana. Meu exemplar deve ter ido parar em algum sebo curitibano, junto com meia-dúzia de LPs, vendidos para financiar minha fuga da cidade no início dos anos 90, logo após a queda do muro de Berlim e a vitória do primeiro aloprado eleito democraticamente no país pós/64.
    Hoje beatnik é um rolê bem diferente. Já estou perto dos 60, mas ainda não sei se estou maduro o suficiente para ler Ulysses, outro calhamaço que em 2022 completa 100 anos. Quem sabe até o final do ano nosso presidente seja outro melhorzinho e eu tenha terminado de ler o romance.

  6. Uma certa elite acha que pode parar o tempo e a História. Se iludem com o demônio de plantão e seus asseclas. O povo dará a resposta no momento oportuno.

  7. …”o que me resta é continuar juntando palavras bonitas e conseguir que alguém leia”.
    Você conseguiu! Lindo texto! Coração acelerou por aqui. Parabéns!

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