Drogas “batizadas”: entenda contexto da fala de Moraes e riscos à saúde pública

Está fora de contexto uma declaração do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes em que ele manifesta preocupação com a qualidade das drogas no Brasil. A fala ocorreu em agosto, durante julgamento do STF a respeito da descriminalização do porte de entorpecentes para consumo próprio. Conforme especialistas consultados pelo Comprova, drogas ilícitas que entram no país, como a maconha e a cocaína, recebem uma série de adulterantes e diluentes, e chegam "menos puras" ao consumidor final. Essa mistura lucrativa para organizações criminosas representa um desafio à saúde pública, uma vez que não há controle sobre o potencial tóxico dos entorpecentes em circulação

Contextualizando

INVESTIGADO POR:

Conteúdo investigadoVídeos que ironizam declarações de Moraes sobre a má qualidade das drogas no Brasil. Em um deles, uma mulher afirma: “É, Brasil… Com tantos problemas para se resolver aqui, como corrupção, desemprego, fome e impostos absurdos, o nosso ministro ‘cabeça de ovo’ anda mais preocupado com a qualidade da cocaína.”

Onde foi publicado: Kwai e Instagram.

Contextualizando: Uma declaração do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes sobre a má qualidade das drogas no Brasil é compartilhada de forma descontextualizada nas redes sociais. A manifestação foi feita no dia 2 de agosto, durante julgamento do STF que analisa a descriminalização do porte de entorpecentes para consumo próprio.

Na ocasião, ao fazer um resgate histórico, Moraes citou a mudança de posição do Brasil no mercado ilegal do tráfico ao longo dos anos, passando de mero “corredor” entre países produtores e compradores de drogas, para o posto de principal “consumidor” desses entorpecentes em circulação. Na sequência, ele acrescenta que o país figura entre os maiores consumidores de maconha e cocaína do mundo para, em seguida, lamentar a baixa qualidade da droga consumida no país e os riscos à saúde do usuário: “É a mais ‘batizada’ que existe”.

Embora tenham evitado a comparação entre países, especialistas ouvidos pelo Comprova observam que as drogas ilícitas que entram no Brasil, de fato, costumam ser adulteradas com compostos que as deixam “menos puras”, ou seja, com menor teor de substância psicoativa. Isso representa ganhos em rendimento e lucro para traficantes, e prejuízos adicionais ao Brasil para além da violência gerada pelo tráfico: representa um problema ao usuário e à saúde pública, uma vez que não há controle sobre o potencial tóxico dos entorpecentes em circulação no país.

Como o vídeo pode ser interpretado fora do contexto original: Ao ser descontextualizada, a fala do ministro, que expressa preocupação com uma questão de saúde pública, pode ser assumida como uma preocupação sem fundamento. Em comentários nas redes sociais, algumas pessoas deslegitimam o debate, enquanto outras atacam o ministro, sugerindo que ele estaria preocupado com a qualidade das drogas pois seria um usuário.

O que diz o responsável pela publicação: O Comprova entrou em contato por e-mail com a autora da peça de desinformação publicada no Instagram, cuja conta é @evelynellima. Eveline Lima disse que viu o vídeo inteiro do ministro e que não compartilhou a declaração na íntegra porque o Instagram Reels somente libera vídeos de até 90 segundos. Na resposta ao Comprova, acrescentou: “Se você acha que essa fala condiz com um ministro do STF, aí já não é um problema meu, afinal eu respeito a democracia e cada um defende o que acredita.”

O contexto da fala de Moraes

A declaração do ministro Alexandre de Moraes ocorreu durante a manifestação do seu voto no julgamento do STF sobre a descriminalização do porte de drogas para consumo próprio, no dia 2 de agosto.

O ministro começa o discurso lembrando que o Brasil faz fronteira com os dois maiores produtores de cocaína do mundo – Peru e Colômbia – e com o maior produtor de maconha do mundo – o Paraguai. Na sequência, lembra que, em meados da década de 1970, em meio a um combate aos cartéis declarado pelo governo norte-americano e com dificuldades para chegar ao consumidor europeu pelos Estados Unidos, esses países encontraram no Brasil um “corredor” para alcançar a Europa, passando pela África. “Era um caminho mais fácil do que subir pelos Estados Unidos, passar pelo Brasil, via África, chegando à Europa”, afirma o ministro.

Porém, constata o ministro, o país que inicialmente serviria apenas como alternativa de trajeto acabou assumindo a posição de maior mercado consumidor desses entorpecentes. “O Brasil tradicionalmente foi um ‘corredor’, tradicionalmente até duas décadas, três. Lamentavelmente o Brasil se transformou num país consumidor, um alto país consumidor”, acrescentou Moraes.

Nesse contexto, ele acrescenta que a droga consumida pelos brasileiros, vinda dos vizinhos Peru, Colômbia e Paraguai, é adulterada e, por isso, é a de “menor qualidade do mundo”, oferecendo ainda mais riscos ao usuário.

“Encontraram no Brasil um mercado consumidor gigantesco e, lamentavelmente, o mercado consumidor da droga de menor qualidade do mundo. Quantos e quantos brasileiros, e sempre as notícias saem, quantos e quantos brasileiros vão para o exterior e, ao utilizarem cocaína, morrem de overdose? E por que isso? Porque utilizam a mesma quantidade que usam no Brasil, só que a droga no Brasil, exatamente por ser também esse ‘corredor’, é a droga mais batizada que existe no mundo, seja maconha, seja cocaína. É a droga de menor qualidade”, observa.

“Então, nós somos um país corredor, o maior consumidor de maconha, o segundo maior consumidor de cocaína e ainda de baixa qualidade, aí sim, com mais riscos ainda ao usuário.”

Na sequência, Moraes acrescenta que foi diante desse cenário, diagnosticado ainda no início dos anos 2000, que o Congresso Nacional aprovou a Lei 11.343, conhecida como Lei de Drogas, sancionada em 2006 pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). O texto torna mais branda a punição para o usuário – substituindo a pena privativa de liberdade por advertência, prestação de serviços à comunidade e medida educativa – enquanto aumenta a pena para o traficante, passando o tempo mínimo de prisão de três para cinco anos.

O objetivo era diminuir o encarceramento de usuários de entorpecentes e tratar o tema como uma questão de saúde pública, não de segurança. Para o ministro, o resultado obtido, contudo, foi o contrário do almejado pelos parlamentares. Na prática, sem critérios específicos para diferenciar usuário de traficante, pessoas flagradas portando drogas para consumo próprio passaram a ser enquadradas como “pequeno traficante”.

Como efeito, conclui Moraes, houve um aumento na quantidade de prisões por tráfico de drogas no Brasil desde então, levando ao fortalecimento das organizações criminosas. “Essa lei não pretendia isso, por óbvio, mas a aplicação dessa lei gerou aumento do poder das facções no Brasil”, avalia Moraes. “Jovem, primário, sem oferecer periculosidade à sociedade foi literalmente capturado pelas organizações criminosas. A questão era a seguinte: ‘Você que chegou agora [à cadeia], ou você se alia a nós ou você é contra nós’. E as facções criminosas foram aumentando o poder.”

O julgamento no STF

O debate foi pautado depois que a Defensoria Pública de São Paulo ingressou com o Recurso Extraordinário (RE) 635659, ainda em 2011, contestando decisão de um colégio recursal que manteve a condenação de um homem à pena de dois meses de prestação de serviços comunitários pelo crime de porte de drogas para consumo pessoal. Para a Defensoria, o ato não afronta a saúde pública e, quando muito, representa danos somente ao próprio usuário.

No recurso, o órgão questiona a constitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/2006, que criminaliza o porte de drogas para consumo pessoal. O principal argumento é que o dispositivo contraria o princípio da intimidade e da vida privada.

O caso começou a ser analisado ainda em 2015 pelo STF, mas foi suspenso por diversas vezes após pedidos de vista. A sessão mais recente a tratar do tema ocorreu em 24 de agosto deste ano, que terminou com cinco votos pela descriminalização do porte de maconha para consumo próprio e um voto pela legalidade do artigo 28 da Lei de Drogas e manutenção da criminalização. O posicionamento dissidente foi do ministro Cristiano Zanin. O julgamento foi suspenso outra vez após pedido de vista do ministro André Mendonça.

O caso tem repercussão geral, o que significa que o entendimento firmado pelos ministros do Supremo deve ser aplicado a casos similares em todo o país. Recentemente, o Comprova explicou em detalhes de que trata o julgamento.

Drogas “batizadas”: o que são e para que servem

A questão envolvendo a qualidade das drogas entra como pano de fundo do debate, que, além de estar relacionado à segurança pública, diz respeito à saúde. Especialistas ouvidos pelo Comprova preferem evitar comparações entre a droga consumida no Brasil e a que circula em outros países, mas garantem que a chamada “droga de rua” – aquela a que o usuário tem acesso no Brasil – costuma, sim, ser uma droga “batizada”, como afirma o ministro.

É que antes de chegar ao consumidor final, a maconha ou a cocaína que entram no país em uma forma mais pura costumam receber uma série de compostos, como adulterantes e diluentes, adicionados por traficantes locais na intenção de tornar o produto mais rentável e lucrativo para as organizações criminosas.

“A ‘droga de fronteira’ é diferente da ‘droga de rua’. Aquele teor da droga que é de certo modo apreendido e verificado pela Polícia Federal é um, quando a gente vai direto no usuário é uma droga que é efetivamente diluída ou que tem algum outro composto que é adicionado ali”, explica o professor da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) Tiago Franco de Oliveira, doutor em Toxicologia e Análises Toxicológicas pela Universidade de São Paulo (USP).

Os adulterantes, explica, são substâncias que promovem uma ação farmacológica semelhante à da droga a que foi adicionada. No caso da cocaína, por exemplo, entre os mais comuns estão o levamisol e a cafeína, que vão promover uma ação estimulante parecida com a da cocaína, além da lidocaína, que causa um efeito de anestesia local.

A perita criminal Lara Regina Soccol Gris, chefe da Divisão de Química Forense do Instituto-Geral de Perícias do Rio Grande do Sul (IGP-RS), lembra que a cocaína tem propriedades anestésicas, tendo sido utilizada com este fim no passado. “Quando o usuário vai cheirar a cocaína, se for adicionada uma substância anestésica, talvez a pessoa que esteja consumindo vai ter essa sensação de amortecimento, e pode ter uma uma falsa ideia de que ‘nossa, essa cocaína é pura’, digamos assim.”

Ela acrescenta, porém, que nem sempre aquilo que é misturado para aumentar o volume da droga possui efeito psicoativo. “Giz moído, farinha, qualquer substância inorgânica, qualquer material que for branco e que tiver um aspecto de pó, em tese, pode ser adicionado ali para aumentar o rendimento”, elenca Gris.

Mas, afinal, por que a “pureza” dos entorpecentes importa?

O professor da UFCSPA esclarece que “pureza” significa “disponibilidade”, ou seja, quanto mais pura a droga, maior a quantidade de substância psicoativa disponível para ser absorvida pelo organismo. O inverso também é verdadeiro: quanto menos pura ela for, maior quantidade o usuário terá de consumir para sentir os mesmos efeitos. Isso leva, consequentemente, a um aumento no consumo de entorpecentes.

“Ele acaba utilizando muito mais substância, principalmente porque essas drogas de abuso têm uma característica que é promover a tolerância. O que a tolerância faz? Você consome uma determinada quantidade de droga hoje. Tem toda uma rede de neuroadaptação do seu organismo, que vai fazer com que ele tente voltar à homeostasia (evento de estabilidade a nível corporal de um organismo). Para se ter o mesmo efeito em utilizações subsequentes, necessariamente o volume que é consumido tende a ser maior”, conclui Oliveira.

Isso explica por que é possível que pessoas que consomem drogas no Brasil possam vir a ter uma overdose ao usar a mesma quantidade da droga em versão mais pura, com teor de substância psicoativa mais elevado, em outros países. Mesmo de cidade para cidade e de estado para estado, esse patamar de pureza pode variar.

Uma pesquisa acadêmica realizada no segundo semestre de 2021 no Rio Grande do Sul, em parceria com o IGP-RS, constatou uma discrepância significativa na concentração de cocaína ao comparar cidades de regiões diversas do estado. Na Região Metropolitana de Porto Alegre, segundo o estudo, o teor variava de 0% a 78%. Já na região oeste do estado, o teor médio era de 24,4%; na região sul, de 33%; no norte, de 31,4%; e na região central, de 30%.

“Isso vai depender da rota de tráfico que chega aqui. Então, é muito correto inferir que a droga é realmente adulterada aqui no estado pelos vários traficantes que fazem a comercialização”, reitera a chefe da Divisão de Química Forense do IGP-RS, coorientadora da monografia. As amostras foram analisadas pela bacharel em Química Industrial pela Universidade Luterana do Brasil (Ulbra) Bárbara Rodrigues Cerveira.

A relação do uso de drogas “batizadas” com a saúde pública

Conforme explicam os especialistas, quanto menos substância psicoativa houver em determinada droga, ou seja, quanto “menos pura” ela for, mais o usuário terá que consumir para alcançar o efeito desejado. O problema é que cada adulterante utilizado possui uma molécula com características químicas e toxicidade específicas, que causa reações diversas no organismo. “Claro que isso [a adição de compostos] vai ter um efeito deletério para o indivíduo. Existem casos de intoxicação por causa dos adulterantes e não por causa da própria droga”, afirma Oliveira.

Em concordância, Gris relata casos de pacientes que foram atendidos em hospitais do Rio Grande do Sul por problemas de saúde causados não apenas pelo uso da cocaína, como também por componentes que foram inseridos na droga. Um exemplo é o levamisol, substância com elevada nefrotoxicidade [nocivo aos rins] adicionada à cocaína.

A chefe da Divisão de Química Forense do IGP-RS também cita o caso dos canabinóides sintéticos, produzidos em laboratório, conhecidos popularmente como Drogas K, que, segundo especialistas, são substâncias muito mais perigosas e nocivas do que o próprio Tetrahidrocanabinol (THC) – principal componente ativo da maconha.

“Existe todo um mercado crescente dessas substâncias, porque elas têm um alto potencial de vício, digamos assim, então eu diria que não é incorreto inferir que a maconha pode estar sendo adulterada com essas substâncias no objetivo até de eventualmente viciar o usuário numa outra substância que vá torná-lo mais dependente”, avalia Gris, ressaltando o risco à saúde pública.

Outro exemplo são as internações de pacientes por conta do fentanil, um analgésico de uso controlado e restrito a hospitais no Brasil que tem sido adicionado a drogas como cocaína, LSD e K2.

Segundo reportagem da CBN, após cinco anos sem registrar casos, o Centro de Assistência Toxicológica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) recebeu quatro pacientes intoxicados pelo fentanil no primeiro semestre de 2023.

“O fentanil estava misturado com as drogas, outros tipos de droga. A pessoa não sabia nem que estava utilizando. Essas pessoas diziam que tinham usado outras drogas, mas não o fentanil”, disse à CBN o coordenador do centro, José Luiz da Costa.

De acordo com a pesquisa “Drogas no Brasil: entre a saúde e a justiça”, publicada em 2015, a clandestinidade imposta pela política criminal contra as drogas implica na “falta de controle de qualidade das substâncias tornadas ilícitas e, consequentemente, aumento das possibilidades de adulteração, de impureza e desconhecimento do potencial tóxico do ‘produto’ entregue ao consumo”.

“Ao invés de controlar ou impedir a distribuição das drogas, a criminalização fomenta e intensifica a sua difusão, obviamente em face da falta de qualquer controle sobre o mercado das drogas tornadas ilícitas, mercado esse, clandestino, livre de qualquer controle ou regulamentação”, diz o documento, que é resultado de um trabalho promovido pelo Núcleo de Estudos e Opinião Pública (NEOP) da Fundação Perseu Abramo (FPA) e a Fundação Rosa Luxemburgo (RLS).

Alcance da publicação: O Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. Até o dia 29 de agosto, os vídeos no Kwai somavam mais de 180,6 mil visualizações. Já os posts no Instagram tinham mais de 1 milhão de visualizações.

Como verificamos: Primeiramente, buscamos uma das frases mencionadas pelo ministro no Google e chegamos a reportagens sobre o julgamento do STF que trata da descriminalização do porte de drogas para uso pessoal. Em seguida, procuramos no canal da Suprema Corte no YouTube pela sessão do dia 2 de agosto, na qual Moraes manifestou seu voto sobre o tema. Uma vez identificado o vídeo da transmissão da sessão, buscamos o ponto exato do trecho compartilhado nas redes sociais para análise do contexto.

Também entrevistamos o doutor em Toxicologia e Análises Toxicológicas Tiago Franco de Oliveira, professor adjunto da UFCSPA, e a perita criminal e chefe da Divisão de Química Forense do IGP-RS, Lara Regina Soccol Gris. Além disso, consultamos pesquisas (12) e reportagens sobre o tema (G1El PaísO GloboBBCNexo).

Por fim, tentamos contato com os responsáveis pelas publicações verificadas.

Por que investigamos: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas e eleições no âmbito federal e abre investigações para publicações que obtiveram maior alcance e engajamento e que induzem a interpretações equivocadas. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.

Outras checagens sobre o tema: O Comprova já checou outros conteúdos suspeitos envolvendo a temática das drogas. Recentemente, mostrou que vídeos enganam ao sugerir que governo federal liberou as drogas. Também já constatou que postagem engana ao associar o PT e Lula a apreensão de drogas no MS e, na seção Comprova Explica, esclareceu o que é a política de redução de danos a usuários de drogas criticada em vídeo por Damares Alves.

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