Um trombone no Beco das Garrafas

Aos 86 anos, o trombonista Raul de Souza rememora suas histórias de música e boêmia. Carioca, o músico viveu alguns anos em Curitiba

Assim que dobrou a rua Duvivier, adentrando o Beco das Garrafas*, o trombonista Raul de Souza não pôde deixar de notar um sujeito avoado, que estava escorado em um poste, olhando vidrado para o céu. Ao se aproximar, Raulzinho reconheceu o figura: era João Gilberto, com quem o instrumentista não se encontrava havia alguns anos. 

“Joãozinho…”, tentou Raul. “Psiu! Aquela estrela ali… você não está ouvindo?”, cortou o homem que havia criado a batida da bossa nova. O som a que João Gilberto se referia não provinha, é claro, das estrelas, mas correspondiam aos acordes que saíam do “Bacará”, uma das quatro boates do Beco, naquele começo de madrugada do verão de 1962.

Minutos depois, passado o transe, João quis saber de Raulzinho. Radicado em Curitiba, onde havia se tornado militar da Aeronáutica, o trombonista estava de férias no Rio, para onde queria voltar definitivamente. “Minha vida é uma loucura, Joãozinho! A farda e o soldo dão segurança, mas acho que já chega de quartel”, confidenciou.

Quando percebeu que chegara o intervalo no “Bacará”, João Gilberto quis entrar para acompanhar o próximo set. “Não dá, João. Os caras não vão me deixar entrar”, disse Raul, apontando para o trombone que trazia a tiracolo – instrumento maldito e proibido no Beco, pela potência do seu som, que encobria os demais. “Pois comigo você entra!”, devolveu o cantor e violonista. 

Com seu prestígio e jeito irresistível, João não só conseguiu liberar a entrada de Raulzinho, como cometeu a proeza de fazer com que Chuca Chuca – um dos sócios do “Bacará” – permitisse que o trombonista desse uma canja. Acompanhado de um contrabaixista e do próprio Chuca Chuca, que se sentou ao piano, Raul foi de improviso, atacando um jazz moderno, mas com um tempero brasileiro.

Trombonista acompanhado de Naná Vasconcellos (percussão), Sergio Brandão (baixo), Edison Machado (bateria) e Toninho Horta (guitarra). Foto: Acervo Pessoal

Pela forma como tocava, o trombone soou aveludado, sem competir com os outros instrumentos. Aquela sessão representou o fim da proibição ao trombone, que passaria a entrar nas boates do Copacabana. Ainda naquelas férias de 1962, Raulzinho também tocaria no Bottle’s e no Little Club, outras duas boates do Beco. Um prenúncio do que aconteceria alguns anos adiante.

Hoje, aos 86 anos e olhando a própria vida em retrospecto, Raul conta as passagens como se narrasse um filme, mas sem dar muita importância, tal se se tratasse de algo corriqueiro, banal. Apesar da idade avançada, se mantém lúcido e ativo. Com sua voz rouca, gosta de conversa e, estiloso, não abre mão do paletó, sempre com camisas estampadas e adereços chamativos, como lenços, correntes e anéis grossos. Também mantém a cabeleira e o bigode que ostentava décadas atrás.

A agenda continua cheia, e de fazer inveja a um garoto que esteja no auge: no ano passado, lançou um novo disco – “Curitiba 58” – e se apresentou em festivais diversos, em países como Suíça, França, Áustria, Alemanha e China. Em junho deste ano, embarcou para uma nova turnê na Europa. Passou seu aniversário – em 23 de agosto – na França. “Nada mal pra um mulatão, né?”, brincou.

Nasce um trombonista

Nascido em 1934, no subúrbio do Rio, Raul, na verdade, foi batizado como João José Pereira de Souza. Apesar de fazer piada, o músico já se incomodou com a cor da própria pele. Filho de um pastor protestante “brancão” e de uma dona de casa “cabocla”, ele é o único mulato da família. Anos adiante, achou estranho quando tirou sua carteira de identidade e viu grafado “cor: pardo”. 

O rapaz se criou em Bangu, onde desenvolveu malandragem para driblar o pai, que queria fazê-lo pastor também. Escapou por pouco. “O que me salvou foi que eu sempre tive um pé fora da igreja, graças a Deus”, disse o músico. Por essa época, o jovem arranjou emprego em uma indústria têxtil, que, por incrível que pareça, lhe abriu as portas para a música. Ali, começou a tocar tuba na banda da fábrica, comandada por militares reformados. Dali para o trombone, foi um pulo. “Quando eu toquei pela primeira vez, o mundo se abriu pra mim. Tudo fez mais sentido”, definiu.

Raul debutou tocando em eventos da própria fábrica e em bailes no bairro, defendendo uns trocados. Logo cresceu os olhos para o prêmio (1,5 mil réis) oferecido ao vencedor do programa de calouros “A Hora do Pato”, apresentado por Ary Barroso, na Rádio Nacional. O rapaz embolsou o prêmio, mas antes de subir ao palco passou por um inusitado batismo artístico. “João José? Isso não é nome de trombonista. A partir de agora, você se chama Raulzinho”, disse-lhe Ary Barroso.

A vitória na Nacional também alçou o menino de subúrbio, que começou a se apresentar em sambas de gafieira, em vários conjuntos no Rio. Raul estava no circuito. Em 1957, aos 23 anos, apadrinhado por Altamiro Carrilho, entrou em estúdio para participar de sua primeira gravação, como integrante da “Turma da Gafieira”, que também tinha Sivuca, Zé Bodega, Jorge Marinho, Edison Machado, Nestor, Paulinho e Britinho. “Mas não era fácil. Negão de subúrbio não tinha entrada em Copacabana. É como se cobrassem passaporte para atravessar o túnel [que dá acesso à Zona Sul]”, relembrou. 

Em busca de estabilidade

Apesar da gravação do disco da “Turma da Gafieira”, as portas de Copacabana se mantiveram mais ou menos fechadas para Raulzinho, que continuava se apresentando – e tirando algum dinheiro – quase que exclusivamente de bailes de gafieira em clubes do subúrbio. 

Com as coisas apertadas no Rio, em 1958, Raul decidiu seguir os passos de seu amigo, o também músico Geraldo Elias, que havia passado em um concurso da Aeronáutica, em Curitiba. O mulato “doidão” e boêmio resolveu que não haveria mal em vestir a farda azul, desde que houvesse alguma segurança financeira nisso.

“Tinha duas vagas. Uma, para primeiro sargento, para tocar bombardino. Eu passei nessa. A outra, ficou com um amigo meu, de nome Dálgio, um loirinho de olhos azuis que foi meu anjo da guarda em Curitiba. Porque foi uma loucura, meu camarada…”, disse Raulzinho.

Ao longo de cinco anos – até 1963 –, é de se espantar que o sargento Souza não tenha sido expulso, embora tenha chegado a puxar cana no quartel. Malandro, para justificar uma falta, inventava uma dor de cabeça aqui, levava um comandante na lábia ali. 

Se apresentava para o serviço na Base Área do Bacacheri todo dia de manhã, mas vinha virado da noitada, na base da “boleta”. Depois de encerrar o expediente às 15 horas, dormia um pouco – duas horas, se tanto – e já se agarrava ao trombone, para estudar. Logo, caía na noite. Não houve boate, bar ou dancing em que Raulzinho não tenha tocado.

“Quando eu estava de serviço à noite, pegava o jipe e dois PAs [soldados da Polícia da Aeronáutica] e saía fardado e duplamente armado: com o revólver .45 e com o trombone. Deixava os PAs na porta da boate, com a metralhadora em mãos, e ia pra da dentro, varar a madrugada tocando”, disse Raul.

 “Eu tocava muito na [boate] Marrocos. No fim da madrugada, pedia um filé mignon enorme, arroz à grega, salada de agrião, um chopp e um Underberg, tomava tudo com duas boletas, para ligar, e ia para o quartel, atravessado. Todo santo dia! Eu devo ter infringido todos os artigos do regimento das Forças Armadas… Foram cinco anos nessa bagunça”, acrescentou, rindo.

De volta ao Rio

Um ano depois de ter se reencontrado com João Gilberto (na cena descrita lá no início), Raulzinho voltou ao Rio. Desta vez, conseguiu terminar de abrir as portas de Copacabana ao trombone. Fez fama. No Beco das Garrafas, tocou com o trio de Antonio Adolfo. Juntou-se a Sérgio Mendes, com o conjunto “Bossa Rio”, com o qual gravou um disco e excursionou pelos Estados Unidos e pela Europa. 

Em 1965, gravou seu primeiro disco solo, o “À Vontade Mesmo”. Paralelamente, passou a integrar o conjunto “Os Cobras”, com quem gravou um álbum, ao lado de um time de craques, como Tenório Jr. (piano), Meirelles (sax e flauta), Zezinho (contrabaixo), Hamilton (pistom) e Milton Banana (bateria). Isso, sem falar em uma infinidade de gravações das quais participou.

Apesar disso, Raulzinho não se livrou de algumas quase frias. Ainda na década de 1960, a dupla Ronaldo Bôscoli e Luís Carlos Miele foi chamada para gerenciar uma nova boate que seria inaugurada na rua Augusta, em São Paulo: a “Blow Up”. Integrando o trio de Luiz Carlos Vinhas, Raul foi contratado para tocar na nova e badalada casa noturna a partir da inauguração, acompanhando cantoras, como Consuelo Leandro e Maria Bethânia. 

O trombonista estranhou: os músicos receberiam o cachê por semana e não ao fim de cada apresentação, como era usual. A pulga atrás da orelha passou a incomodar mais quando, após a segunda semana, os instrumentistas ainda não tinham visto a cor de dinheiro. “O Miele, sempre daquele jeito, falando que amanhã ia resolver, que ia falar com os donos. Pura conversa! [Ele] estava com os bolsos cheios, porque o movimento era fantástico”, disse Raul.

O trombonista decidiu ser drástico. Na boca em que comprava “pó”, pediu um revólver emprestado. Desmuniciou a arma e a ocultou sob o paletó. Após o encerramento do expediente na “Blow Up”, tentou mais uma vez receber os cachês atrasados. Mais uma vez, ouviu a “lenga-lenga” de Miele, que disse que pagaria “amanhã”. “Tem certeza que não dá pra ser hoje, não?”, perguntou Raulzinho, sacando o revólver e o apontando ao produtor.

Branco como cera e gaguejando, Miele tirou do bolso um bolo de notas de dinheiro, fez as contas e pagou o instrumentista. “Ele nunca soube que o revólver estava sem bala!”, riu Raulzinho. “Depois daquilo, nunca mais atrasou um dia. Os músicos receberam sem atraso”, acrescentou.

Também desta temporada, Raul conta uma boa. Conforme narra, em um intervalo, se enfurnou no banheiro da “Blow Up”, para estourar um baseado de maconha “do grossão”. Quando saiu da cabine sanitária, percebeu que havia um homem de smoking, lavando as mãos. Ao chegar perto, o trombonista empalideceu: era o ex-presidente Juscelino Kubistchek. 

Raulzinho percebeu que o banheiro estava tomado pela névoa e, envergonhado, tentou aliviar a tensão. “Eu falei: ‘Ô, presidente! O senhor é maravilhoso! Me desculpa pela marofa…”. Ele falou: ‘Tudo bem… Eu ouvi o seu trombone. Que som mais suave. Parabéns’. Eu pensei que fosse ganhar um puxão de orelha e ganhei parabéns. É mole?”, relembrou. 

Mundo afora

Em 1969, Raulzinho se mudou para o México, mas não abriu mão de manter sua rotina de “doidão”, que se confundia à de músico. De lá, foi para os Estados Unidos, onde se manteve bastante próximo dos brasileiros Airto Moreira (o legendário baterista) e de Flora Purim (cantora de jazz, mulher de Airto). Nos “States”, ao longo da década de 1970, levou uma vida intensa, insana e produtiva. 

Gravou cinco discos, compôs muito, aprontou ainda mais e tocou com expoentes do jazz, como Sarah Vaughan, Sonny Rollins, Frank Rosolino, Freddie Hubbard, George Duke, Jimmy Smith e Chick Corea. Raulzinho tanto fez que foi reconhecido com o título de Cidadão Honorário de Atlanta, na Geórgia, onde morou. 

Músico, que mora em São Paulo mas ainda vem a Curitiba, também toca saxofone. Foto: Reprodução/Facebook

Após uns anos de oscilação no Brasil – em que as coisas ora iam bem, ora nem tanto assim –, Raul foi tentar a sorte em Paris, na França, levando consigo sua mulher de então, e uma filha de três anos. Logo, no entanto, as dificuldades catalisaram brigas. “Ela fazia voar cadeira, banco na cabeça e tudo!”, contou o trombonista. 

Raulzinho entendeu que era melhor se separar. “Ela era uma mulata bonita, altona. Eu disse: ‘Amanhã, você vai na Ppraça Luxemburgo, que você vai conhecer alguém e vai se interessar’. No segundo dia, ela foi e conheceu um brancão de olhos azuis, de nome Philip. Quando ela voltou, eu falei pra nossa filha: ‘Eu acho que sua mãe arranjou um namorado’. Acabou se casando com o gringo. Hoje, eles têm um filho, um molecão de 17 anos, enorme”, contou.

Raulzinho também se arranjou. Conheceu a francesa Yolande, que logo passou a adotar o sobrenome do trombonista e para quem o instrumentista compôs um jazz meloso e melodioso. O casal já está junto há 22 anos, com uma parceria constante e retilínea que Raul, nunca tinha encontrado até então. Vivem em um casarão na Vila Mariana, em São Paulo, mas estão sempre às voltas por aí – em Curitiba, onde o trombonista tem três filhas, ou em algum festival onde Raulzinho continua dando a graça de seu trombone. 

O velho trombonista também segue compondo com a vitalidade de um menino. “Eu vou continuar toctocando até quando der, meu filho, porque não existe Raul sem trombone”, finalizou.

*N. do E.: localizado no Rio de Janeiro, o Beco das Garrafas foi o reduto da bossa nova, no anos 1950 e 1960, e também do samba-canção. Foi no Bottle’s Bar, em 1963, que Elis Regina estreio, por exemplo.

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2 comentários em “Um trombone no Beco das Garrafas”

  1. Paulo Roberto de Andrade Mercer

    Muito bom o texto. Parabéns . Gostei muito e vou compartilhar com um amigo carioca que aprecia muito a obra musical de Raul de Souza ,.( Paulo Mercer )

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