Secos & Molhados: poesia e androginia que resistem

Livro retrata carreira curta e influente de grupo no início dos anos 70

Em Primavera nos dentes (Três Estrelas, 376 p.), o jornalista e escritor Miguel de Almeida percorre o início dos anos 1970, que vai da formação à dissolução do grupo musical Secos & Molhados, o qual, com apenas dois discos e menos de cinco anos de vida, fez história dentro e fora do país; muitos afirmam que o rosto pintado de branco proposto por Ney Matogrosso para os integrantes do grupo brasileiro, a partir da estética do teatro nô, teria inspirado a banda de rock norte-americana Kiss.

O título escolhido por Almeida parece resumir a trajetória do grupo: “Primavera nos dentes” é uma canção que compõe o primeiro LP do Secos & Molhados, cuja letra é de autoria do jornalista português João Ricardo, um dos responsável pela criação do grupo, e de João Apolinário, seu pai, também jornalista e o pivô, mais tarde, da separação da turma.

A letra da música tem muito a ver com a história de cada um de seus integrantes: João Ricardo, que segurou entre os dentes o sonho de lançar o grupo; Gérson Conrad, que não pulou do barco mesmo sendo chamado de “veado” por pintar o rosto (outros músicos, que chegaram a integrar a banda, não aguentaram a pressão); e Ney Matogrosso, que saiu do Mato Grosso (hoje do Sul) com o sonho de ser ator e acabou se tornando um dos maiores intérpretes do Brasil. Diz a canção: “Quem tem consciência para ter coragem/ Quem tem a força de saber que existe/ E no centro da própria engrenagem/ Inventa a contramola que resiste”.

“Secos e molhados”, termo escolhido por João Ricardo para batizar o grupo, refere-se a estabelecimentos de uma época em que não existiam grandes supermercados e onde no entanto se encontrava “de tudo”. O repertório musical do grupo tinha algo desses estabelecimentos populares: misturava rock inglês com fado português e com modinhas brasileiras.

Nos anos 1970, em plena ditadura militar, Secos & Molhados não passou ileso dos embates com a polícia e com a censura. As performances ousadas, em especial de Ney Matogrosso, que, maquiado e sem camisa, cantava e remexia-se sensualmente, nem sempre eram bem recebidas pelas autoridades. Em um dos shows, o delegado informou que a mulher do então ministro de Minas e Energia, Shigeaki Ueki, estava presente e “se incomodava com o peito nu do cantor”. Ney se negou a cantar “vestido”, e a polícia acabou cedendo.

Em tempos de censura e repressão, os militares andavam atrás de artistas, professores e estudantes, mas pareciam não entender muito a respeito de arte: “sendo uma ditadura à brasileira, muita coisa passava despercebida debaixo dos bigodes e quepes das autoridades, ainda mais por ser a poesia uma linguagem mais elaborada”, lembra Almeida. E era justamente de poesia que se alimentavam João Ricardo e Gérson Conrad.

Ironicamente, em plena ditadura militar, apoiada por quem defendia a moral e os bons costumes, não foi a dupla Dom & Ravel, com “Eu te amo, meu Brasil”, que ganhou o coração de homens, mulheres e crianças, mas um grupo ousado como Secos & Molhados.

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