Pesquisador consegue decisão que abre “caixa preta” do ECAD

Escritório arrecada perto de R$ 1 bilhão por ano, mas distribuição de valores é feita de forma pouco transparente

Alguns estudos sobre mercado da música mostram que uma canção pop deve ter no máximo três minutos e meio de duração para ser um hit. Curiosamente, foi o tempo que durou a votação do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que pode ter dado o passo inicial de uma grande transformação no mercado fonográfico brasileiro.

A decisão, proferida no dia 8 de junho, estabeleceu que o advogado Alexandre Pesserl, pesquisador da Universidade Federal do Paraná (UFPR), pode ter acesso aos dados completos de titularidade das obras e fonogramas geridos pela União Brasileira de Compositores (UBC), a maior associação de autores dentro do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD).

Isso significa que será possível conhecer qual é exatamente a parte que cabe a cada um dos elos da cadeia de produção do mercado – compositores, músicos, intérpretes, produtores, editoras e gravadoras – na divisão dos direitos de uma composição ou gravação musical. Vai dar para saber quem são os “donos” das músicas, algo que nem os próprios sabem dizer atualmente.

“Ninguém sabe direito.  Há sempre uma névoa em cima dessa praia.  Quem como eu começou o trabalho lá atrás, em um tempo em que se dependia totalmente das gravadoras, ficava na mão deles e não tinha outra opção”, disse Nando Cordel.   

Um dos compositores mais gravados do país, com centenas de canções, entre elas grandes sucessos como “De Volta Pro Aconchego” e “Isso Aqui Tá Bom Demais”, Cordel disse não ter ideia sobre quanto é a sua parte na divisão dos royalties de suas obras, nem quanto é a parte dos seus parceiros ou quanto cabe às editoras que publicaram suas “obras musicais” ou as gravadoras que são donas dos “fonogramas” de suas canções.

Nem Cordel, nem ninguém sabe, pois até hoje não há uma base de dados aberta e transparente. Até a sentença do STJ, o ECAD e as associações de autores que o compõem não publicam essas informações amparados por uma instrução normativa do extinto Ministério da Cultura que estabelece dois níveis de acesso ao ECADNET, o sistema de divulgação dos dados atualmente no ar.

Nele, há um acesso para o “público em geral” em que só constam as informações básicas das obras e fonogramas e há outro para uso interno que tem acesso aos relatórios detalhados.

Foi essa falta de transparência o objeto da ação movida por Pesserl. Ele pediu à Justiça acesso integral ao cadastro das obras musicais do catálogo da UBC sob justificativa de que o cruzamento de dados para sua tese de doutorado só seria possível com o fornecimento das informações da participação individual de cada artista nas obras coletivas como determina a Lei de Direitos Autorais.

Alexandre Pesserl: autor da ação no STJ. Foto: Arquivo pessoal

O caso chegou ao STJ e a relatora, a ministra Nancy Andrighi, seguida de forma unânime pelos demais ministros, disse que será preciso manter um “cadastro centralizado de todos os contratos, declarações ou documentos de qualquer natureza que comprovem a autoria e a titularidade das obras e dos fonogramas, bem como as participações individuais em cada obra e em cada fonograma, prevenindo o falseamento de dados e fraudes e promovendo a desambiguação de títulos similares de obras” e que “tais informações são de interesse público e o acesso a elas deverá ser disponibilizado por meio eletrônico a qualquer interessado, de forma gratuita”.

O professor da UFRJ Allan Rocha, diretor do Instituto Brasileiro de Direitos Autorais, destaca dois potenciais transformadores da decisão judicial sobre o mercado da música.

“O primeiro é na elaboração de políticas públicas, pois vamos saber quantas das músicas cadastradas no ECAD do Brasil, pertencem a músicos independentes ou grandes produtoras. Qual o nível de concentração de titularidade, ou seja, se uma empresa tem 60% de todas as músicas por exemplo então esse é um ponto importantíssimo para a pesquisa de políticas públicas”, disse.

O outro ponto é a capacidade de mudar a forma do registro dos direitos autorais e da distribuição de royalties no país. “O acesso a esse banco de dados joga luzes na estrutura do sistema. Se não resolve todos os problemas, traz um elemento fundamental para se pensar em oferecer novas formas de remuneração para autores, formas mais rápidas e mais honestas, para desenvolver contratos inteligentes, sistemas automáticos de pagamento e distribuição direta”, disse.

Há outras consequências previsíveis como as que atingem as “obras órfãs”, aquelas cuja editora titular faliu ou não existe mais ou cujo autor morreu e não há herdeiros identificáveis. Com um banco de dados público será possível mapear os artigos culturais existentes, descobrir eventuais contratos abusivos ou irregulares e fazer a retificação em caso de inconsistências.

Isso poderia ajudar a solucionar o problema dos chamados créditos “retidos”, como são chamados os recursos captados de obras e fonogramas que não podem ser identificados seja por cadastros malfeitos, informações conflitantes e outras irregularidades formais.

Nestes casos, os valores destinados aos titulares ficam retidos no ECAD até que o cadastro seja regularizado, dentro do prazo de cinco anos. Se isso não acontece, o dinheiro é distribuído preferencialmente para os titulares das músicas mais executadas no mesmo segmento.

Segundo o último relatório do ECAD, a distribuição de direitos autorais no Brasil em 2020 foi de R$ 947,9 milhões e contemplou mais de 263 mil compositores, músicos, intérpretes e demais titulares, além das associações. Cerca de R$ 170 milhões, ou quase 20%, foram anotados sob a rubrica dos créditos retidos e divididos entre os mais tocados.

Outro Lado

Após a publicação do acórdão, a UBC entrou com o pedido de embargos de declaração alegando que não pode disponibilizar o rol de informações, pois isso revelaria informações pessoais, privadas e atinentes às particularidades da gestão dos repertórios dos titulares de direitos autorais e que os “dados objeto da decisão do STJ já são disponibilizados, conforme determina a lei”.

Em entrevista ao Plural, o advogado Sydney Sanchez disse ainda que “a UBC cumpria regularmente a Lei de Direitos Autorais e que as informações originalmente pretendidas pelo professor eram excessivas”. Caberá agora ao STJ decidir sobre os limites do pedido.

Para Pesserl, o resultado mais importante é a confirmação da existência do direito de acesso a tais informações. Ele acredita, no entanto, que uma revolução do mercado pode ter se iniciado.

“A partir do acesso a este banco de dados, abre-se a possibilidade de registros de direitos autorais de forma aberta, em blockchains públicas, que permitiriam o mapeamento de recursos culturais abertos e a criação do domínio público positivo, um conjunto de conhecimentos que devem permanecer em modo de livre acesso e uso da sociedade”.

Para o olhar do compositor Nando Cordel o importante é que haja maior transparência a cadeia produtiva da música. “O mundo é transparente. Nós é que criamos mistérios e máscaras. Acho que chegou a hora de se ter mais autonomia. Não só em direitos autorais, mas em toda atividade humana. Tudo o que rege a sociedade precisa ser transparente. Precisa ser claro para todos. Por que esconder?”

Glossário

Obra Musical: são as composições musicais, usualmente constituídas por letra e música. Normalmente são controladas por empresas chamadas “editoras musicais”, que, mediante contrato com os compositores, são as responsáveis pelos seus registros e por sua gestão, autorizando que terceiros utilizem tais obras como por exemplo, licenças para regravações, para utilização em publicidade, em filmes, etc.

Fonograma: são as gravações das obras musicais. São controladas pelos “produtores fonográficos”, ou gravadoras, que devem obter permissão por parte das editoras ou dos compositores para fazerem a fixação, bem como também contratar artistas intérpretes para fazer a gravação. Os produtores fonográficos são responsáveis por gerar um código chamado ISRC, que é uma planilha contendo os nomes de quem participou daquela gravação junto com os percentuais de titularidade que cada pessoa tem. Também são os responsáveis pela distribuição das músicas, tanto no meio físico quanto no meio digital. Uma obra pode ter vários fonogramas, enquanto um fonograma normalmente conterá apenas uma obra.

Blockchain: um “livro-caixa” digital, descentralizado, distribuído e, muitas vezes, público, que consiste em registros – chamados de blocos – usados para registrar transações em muitos computadores, de forma que nenhum bloco envolvido possa ser alterado retroativamente, sem a alteração de todos os blocos subsequentes.

Sobre o/a autor/a

6 comentários em “Pesquisador consegue decisão que abre “caixa preta” do ECAD”

    1. Alexandre Sant'Anna

      Outro detalhe é que a reportagem errou a informar que a Rubrica retidos é dividida pelos mais tocados. Primeiro não existe Rubrica retidos e sim Liberação de Retidos de diversas Rubricas, como Show, Rádio e Tv por exemplo. Os valores são pagos para os titulares assim que as músicas são identificadas.

      1. Exatamente, temos acesso aos nossos créditos, nossos relatórios mensais de tudo, não tem que terceiros ter acesso de nada, quem não sabe tem que procurar as sociedades para se cadastrar e aprender como ver seus créditos via seus relatórios. Muito me estranha Nando sendo da ABRAMUS e o Sr. da matéria citar tanto a UBC!

  1. Quer ter acesso aos valores dos artista com que propósito? Ideia totalmente absurda, me obrigue a dar acesso à terceiros sobre algo que é totalmente privado e pessoal. Nando é da ABRAMUS , não entendi o motivo de “ir pra cima” da UBC, História muito estranha!!! A CAIXA CONTINUA FECHADA, vai pra cima das plataformas digitais, do festival de Campina Grande que faz mais de 10 anos que não paga direitos autorais, das gravadoras que não dá acesso ao autor sobre os repasses feitos às editoras sobre uso das suas obras, tanta coisa pra “pesquisar”, quer ter informação do dinheiro dos outros, sei não hein!?

  2. Clevyo Fernandes Costa Ribeiro

    Bom dia. Excelente trabalho de Dr. Alexandre Perssel. O ECAD esconde por trás de sua atuação inúmeras caixas pretas. Dentre elas o critério, sem razão alguma, de cobrança de mensalidades às rádios , por exemplo. Tá aí outra questão que deve haver a intervenção para ser atingida a transparência e a justiça.

  3. FRANCISCO RODOLFO EDUARDO PESSERL

    A cada dia novas “caixas pretas” são abertas, graças à transparência gradual que os aplicativos de busca digitais fomentaram.
    Desse modo, joga-se luz sobre sistemas e organizações acostumados a decidir, autocraticamente, quem tem direito a que – gerando as naturais suspeitas sobre a lisura de sua administração de ativos de terceiros.
    Essa medida deverá “oxigenar” o mercado da propriedade intelectual, permitindo a cada autor ter um real controle sobre o valor de suas obras para o mercado – e sobre a parte da renda que lhe compete.

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