Nelson Sargento foi um sonho que a gente teve

Com Nelson vão embora a memória dos últimos 100 anos de música brasileira e a pessoa mais brilhante que conheci

Tinha lido um dia desses sobre a corrente budista que acredita que nos períodos de guerras e catástrofes, quando há muitas mortes e sofrimentos injustos, algumas almas mais elevadas também precisam subir para equilibrar o conjunto e dividir a luz com aquelas que foram levadas violentamente.

Eu, que em geral não creio, me pego agarrado à essa ideia desde que soube que nosso griô maior, Nelson Sargento, subiu nesta manhã. Mesmo já esperando a notícia, caí no chão para chorar junto com o que sobrou de país.  

Nelson foi um sonho que a gente teve. Um artista popular e genial que só poderia ter existido no Brasil do nosso tempo.

Nascido perto da “pequena África”, na zona portuária do Rio, 36 anos depois do fim oficial da escravidão. O destino dançou o miudinho e o levou do Salgueiro para o morro da Mangueira e para perto da música.

Nelson virou Sargento no Exército – no tempo em que havia comunistas fardados – e trabalhou muito em diversos ofícios, principalmente como pintor de paredes.

Demorou cinco décadas para que fosse reconhecido como músico e poder viver da arte em tempo integral. Desde então, porém, passou outras cinco sendo um criador brilhante em muitas frentes: pintor de quadros belíssimos, ator premiado, escritor livros de aforismos e de poemas e nome maior da música.

Nelson com seus alunos de samba em Curitiba. Foto: Theo Marques

Nelson era um elo entre nosso tempo e a época gloriosa das escolas quando os gigantes batucavam nos terreiros. Com o velho Sargento, desaparecem para sempre centenas de sambas que só ele lembrava.

Nélson era um cidadão mundo que conheceu de cabo a rabo. Sabia pisar em qualquer chão e dançar qualquer ritmo. “Somos atores no teatro da vida sem direito de ensaiar”, dizia.

Nelson Mattos também foi meu amigo mais especial e improvável desde o ano 2000, quando veio ensinar “composição de samba” numa Oficina de Música.

Não sabia o que poderia dar isso, mas me joguei. Tinha 21 anos e a cabeça virada pelo samba, boêmia e pela cultura popular.

Naquele fim de século, havia um sentimento nacional de reafirmação do samba acontecendo mesmo tempo em todo país. Havia batucada no ar, além dos passarinhos e uma onda política de esperança. 

Em Curitiba, o selo Revivendo, de Leon Barg, e o Gente Boa da Melhor Qualidade eram parte que nos cabia neste zeitgeist.

Meus melhores amigos e meu irmão formavam o GBMQ, banda que só tocava samba brasileiro das décadas de 1920 a 1950 e naquelas noites da virada do século enchia os bares, salões de clubes e teatros todas as semanas.

Naquele verão, aos 75 anos, Nelson virou nosso professor no Colégio Estadual do Paraná, ainda que ninguém aprenda o samba em salas de aula.  

Entre os alunos, os “gente boa” André Scheinckman, Guto Gevaerd e meu irmão Luciano e personagens da música local como a dupla Tiziu e Gabriel Scwhartz, do Trio Quintina, Romann, a compositora Etel Frota e outros que a amnésia de duas décadas de ressacas me impede de lembrar.

Nelson no Samba do Sindicatis. Foto: José Carlos Branco

Foi o nosso verão do amor. Logo me aproximei de Nelson, de seu filho e escudeiro Ronaldo Mattos e de sua querida esposa Evonete. No primeiro fim de semana já fizemos um show do Gente Boa com Nelson no Vox que ainda era na esquina da Saldanha Marinho.

Nos anos seguintes, participei da produção de alguns shows do Nelson em Curitiba. Um deles especialmente antológico no extinto salão do Clube Urca, na rua Alberto Folloni para quase 4 mil pessoas.

Um dos momentos auge da minha existência foi atravessar o salão lotado depois do show com Nelson segurando meu ombro enquanto eu abria caminho na multidão como um Moisés embriagado.

No outro ombro, segurava a alça de seu violão ainda quente. Durante nosso lerdo escoamento, a galera ia abrindo caminho e fazendo gestos de reverência. Glória e consagração no Ahú.  

Eu era o motorista oficial da família Mattos em Curitiba, usando um Pálio azul-calcinha de minha saudosa mãe que o Nelson batizou de “o possante”.

Foi com o possante que desci a estrada da Graciosa levando Nelson e Ronaldo para Antonina, onde o velho Sargento seria a atração principal do Festival de Inverno de 2004.

Tínhamos vouchers para comer no restaurante Madalozo e comemos um barreado à beira do Nhundiaquara com o Nelson contando histórias da Mangueira e de suas viagens pelo mundo.

Nelson e Sandro Moser, uma amizade de duas décadas. Foto: Arquivo pessoal

Lembro que na empolgação da pinga de banana pedimos que o garçom fizesse o infame “teste do xampu” e ele escolheu a cabeça brilhante do mestre para a brincadeira. No final de toda a macaquice, Nelson só conseguiu dizer: “Puta que o pariu”.

Quando chegamos no Hotel, ele observou: “Ah que bela e provinciana cidade. Parece o Brasil da minha infância. Será que o banheiro é coletivo?”

Fizemos mais um show no Cine, no ano seguinte, sempre com o Gente Boa. Lembro que depois de toda a trabalheira que envolveu a produção do evento, conseguimos pagar a todos e sobrou o valor de duas cervejas para cada um dos sócios.

Antes, eu tinha ido sozinho para o Rio passar o réveillon de 2002 com o intuito de achar o lugar um lugar para morar e, claro, enlouquecer naquelas ruas de um Brasil que não existe mais.

Liguei para o Nelson que me chamou para passar a ceia com a sua numerosíssima família em seu apartamento em Copacabana. “Mas venha cedo, logo depois do almoço.”

Cheguei na hora sugerida e achei de bom tom levar um fardo de cervejas geladas. Evonete agradeceu, mas disse “tudo bem. Só que o Nelson não pode beber”.  

Nelson então colocou o cd com as músicas que seus “alunos” gravaram naquelas tardes no Estadual e ficamos ali com nossas Brahmas – ele bebia escondido em goles fulminantes que esvaziavam de um só golpe o copo americano.

“O teu samba é o melhor”, ele disse fingindo que gostava. Eu fingi que acreditei.

Passei a última tarde do ano ouvindo o disco Jamelão canta Lupicínio com o maior sambista brasileiro. “O samba é triste para que a gente não seja”, ele me ensinou.

Depois nos reencontramos ainda muitas vezes no Rio ou nas diversas visitas de Nelson para “rever a juventude paranaense”.

Quando eu tinha um telefone fixo, ele muitas vezes ligava passando trotes, sempre sagaz e sacana.

Em 2016, a rapaziada do Samba do Sindicatis trouxe o Nelson para uma roda de samba apoteótica cujos registros do fotógrafo José Carlos Branco estão me fazendo chorar de novo.

Nos vimos pela última vez em 2019 nos ensaios do show de sua turnê de 95 anos.

Naquela vez ele me contou que tinha trabalhado como pintor para a família Munhoz da Rocha nos anos 1960 e que estava assustado com “as transformações sociais pelas quais o Japão estava passando” e que ele quase não tinha reconhecido o “país do sol nascente”, de onde acabava de chegar.

Sobre as dores do Brasil, nem quis falar, parecendo pressentir algo.

Não fosse a pandemia, Nelson teria provavelmente morrido no palco.

Com ele agora, vão embora a memória dos últimos 100 anos de música brasileira, a cabeça mais ágil e bem-humorada e a pessoa mais brilhante que conheci.

Fica a sensação de que tudo que a gente ama está destruído ou exilado, e que precisa ser reconstruído “pra frente e rápido e, se possível, bem feito”, como o mestre sempre dizia.

Sobre o/a autor/a

7 comentários em “Nelson Sargento foi um sonho que a gente teve”

  1. Rafaelle Mendes

    Ô Sandro. Chorei junto ao te ler.
    Se eu que só o ouvia sinto o pesar de sua passagem, imagino o quanto doa à você que tinha a alegria de chamá-lo de amigo. Meus sentimentos.

  2. Derramei umas lágrimas por aqui. Imagino a dor de quem teve o privilégio de conviver com este ser único e tão especial.
    Que dias difíceis!

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