Com “Setra”, de Eduardo Feliz, nasce um poeta

Feliz surge como um poeta experiente já em seu primeiro livro, e essa é a impressão que temos numa leitura de "Setra"

Nasce um poeta. De tempos em tempos isso ocorre, mas nem sempre de maneira simples, sendo a poesia o sumo da linguagem, e para muitos coisa da inspiração. E é mas também não é. Vem a ser sim um estado de pura contemplação, mas antes de tudo a poesia é trabalho com a língua, construção de mundos e ideias, e muitas vezes surge de um processo de anos de latência, de escrita mental e imaginária. Esse parece ser o caso de “Setra”, o livro de estreia de Eduardo José Feliz.

Feliz surge como um poeta experiente já em seu primeiro livro, e essa é a impressão que temos numa leitura de “Setra”, que acaba de ser publicado pela editora baiana Mondrongo. “Setra” mira o alvo, como quando caça a onça imaginária de um tapete na sala: A onça tapete/ na sala da sede da fazenda/ não metia medo/ e tinha olhos de vidro saltados/ Todos pisavam indiferentes/ é caro o tapete pisado/ eu não/ andava pelo lado, até encará- la tête-à-tête […]. O bodoque, o estilingue, a memória de um tempo passado de ruas e casas e pomares, o diálogo com a onça tramada, revelam um observador atento ao tempo e aos sentimentos muitas vezes entediado ou mesmo divertido diante de si e de sua própria história. “Setra” é acima de tudo isso, um memorial.

Não por acaso no poema de abertura Volvebatum amor, escrito em latim, o poeta dedica-se a exaltação do nascimento de um amor, talvez ao modo nietzscheano de um amor fati, esse amor ao destino [“Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas. Amor-fati [amor ao destino]: seja este, doravante, o meu amor! Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores. Que minha única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que diz Sim!”]. A poesia como ofício da afirmação e destino humano, voluta incessante, espiral.

Ainda em “Setra” as contradições que se revelam por existir entre o medo e o enfrentamento, na repetição dos verbos brotar/marchar/matar: O medo marcha em filas paralelas/ O medo soa hinos na turba iminente/ A fé brota como cereal de inverno/ O risco brota junto como praga/ A insignificância te mata/ Dê um passo à frente/ Siga sem muito alarde.

Dialogando com as lembranças mais intensas os poemas de “Setra” são enfim, essa polifonia de lembranças mínimas e delicadas, entre aromas e silêncios que retornam para revolver as palavras: O avô de costas pra mim/ no fogão a lenha a fritar/ Não fuja, gentil lembrança. Aí o poeta que sempre habitou a casa. O poeta que em “Setra” olha para o tempo, não para atingir a mirada mas para fazer com que esses punctuns da memória se reavivem como alimento/palavra: Algum dia sentirás vontade de rezar/ajoelhar e espalhar pedidos/ Algum dia acordarás velado/ e livre de ser único.

Vamos à leitura porque nasceu um poeta.

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