A volta do Vampiro

Quase oitenta anos depois de seu lançamento, Dalton Trevisan reedita "Sonata ao Luar", livro que chegou a renegar. E é incrível ver como aos 20 anos ele já estava pronto

Não sei se sou só eu, ou se o Leopoldo, o cachorro que veio aqui pra casa este ano, é especialmente tentador. Mas nas últimas semanas o passeio noturno com o nosso bicho tem sido um verdadeiro espetáculo acrobático aéreo.

Morcegos.

Aos montes.

Eles dão rasantes que roçam a minha cabeça, voam de árvore em árvore e, um dia desses, tive a sorte de acompanhar por uns vinte metros o voo de um camarada que veio bem na direção da minha cara, desviando só nos últimos segundos.

Tudo bem que eu sei, e todo mundo precisa saber, que eles são só umas criaturinhas inofensivas, que estão aproveitando a falta de luz pra comer frutas e, aparentemente, as flores carnudas de uma árvore bem aqui na frente do meu prédio. Mas são morcegos, e a nossa imaginação dá saltos, e voa com eles.

Agora, por exemplo, o Renfield que mora em mim (e continua à espera do mestre Drácula), não pode deixar de interpretar essa invasão de morcegos como um sinal de que, sim, ele está de volta.
O Vampiro continua entre nós.

*

Não são tantas assim (apesar da velha cantoria oficial) as vantagens claras de se morar em Curitiba.
Mas uma delas, inequivocamente, é o fato de vivermos na cidade do maior escritor vivo do Brasil, e de ele fazer dessa nossa cidade seu palco, sua fonte, sua inspiração (sua inimiga também, é claro!) e sua destinatária agora quase única. Afinal, fora a “Antologia Pessoal” que apareceu inda agorinha pela editora Record, os leitores desse brasilzão por aí passaram a última década sem receber lançamentos de Dalton Trevisan, que afinal de contas está roçando os cem anos de idade, e não tem mesmo que sair provando nada pra ninguém: está com sua obra mais do que provada.

Já quem está aqui na vila da luz dos pinhais pôde (se tivesse as conexões certas) continuar recebendo os pequenos cordéis que o escritor continua soltando todo ano. E (não precisamos contar pra ninguém, mas…) mesmo aquela famosa antologia teve uma irmã oculta, chamada “Gente de Curitiba”, que circulou apenas por aqui, entre poucos felizardos.

É bem a cara do seu Dalton.

Mesmo quando parece se dobrar aos mecanismos do estrelato editorial, produzindo afinal uma antologia “definitiva” para sua editora, ele sapeca também um samizdat meio mítico e clandestino, de circulação mais restrita.

E agora mais essa.

Edição de “Sonata ao Luar” da Arte e Letra

Depois de quase oitenta anos do seu lançamento, reaparece em público essa “Sonata ao Luar”, um dos textos mais mitologizados do século, dada a aversão que o próprio autor acabou desenvolvendo por ele em décadas posteriores, deslegitimando o volume e, dizem as más línguas, chegando até a destruir os exemplares que por acaso lhe caíssem nas mãos. A imagem que Trevisan construiu, com um cuidado e uma inteligência sem paralelo entre os nossos escritores, começa a existir apenas a partir da publicação das “Novelas nada exemplares”. Lançado quase quinze anos depois da Sonata, este livro já apareceu por uma editora de alcance nacional, e a esta altura Trevisan era figura conhecida, especialmente como o editor da revista Joaquim, que tinha conseguido, nos anos quarenta, o prodígio de colocar Curitiba no mapa da literatura nacional.

A “Sonata” é de fato anterior a tudo isso. Seu lançamento original, na verdade, ocorre exatamente antes disso tudo, em 1945, quando seu autor mal acabava de completar, pasmem, vinte aninhos de idade.

*

Uma vez eu vi uma palestra de um grande autor nacional que afirmava categoricamente que, apesar de ser razoavelmente comum a figura do poeta precoce e brilhante, a prosa literária dependeria de maior experiência de vida, o que segundo ele determina que os grandes escritores tendam a estrear mais tarde. (Não seria surpresa se eu revelasse agora que este grande autor nacional estreou também “mais tarde”.)

A primeira coisa que me ocorreu ao ouvir isso foi: “excelência, apresento-vos James Joyce”. Afinal, Joyce começou a escrever contos aos 22 anos de idade, já num nível assombroso de qualidade e de aprofundamento psicológico.

Ora, Dalton Trevisan é ele mesmo um leitor fascinado e percuciente (ô, palavrinha!) de Joyce, e viria a ser responsável pela primeira publicação (na Joaquim) de um trecho traduzido do “Ulysses” no Brasil. E a questão é que hoje, depois de reler atentamente esta “Sonata ao Luar”, eu teria mais esse argumento com que responder ao grande autor nacional lá daquela palestra.

Excelência, apresento-vos Dalton Trevisan.

Porque se você tiver a sorte de conseguir um desses 120 exemplares de “Sonata ao Luar” que a livraria e editora Arte & Letra acaba de colocar à venda, com projeto gráfico e editorial de Thiago Tizzot e Fabiana Faversani, que há anos se ocupa da gestão da obra e dos arquivos de Trevisan, você vai descobrir que o desgracido, mal saído da adolescência, já era todo o escritor assombroso que viria a ser, e viria a ser, e viria a ser.

Porque não existe autor mais consistente que Trevisan.

E também não existe autor mais mutável que Trevisan.

Ele passou os últimos oitenta anos refinando, revisando, revendo e reelaborando uma voz, uma poética, um estilo absolutamente único, que no entanto passou por diversas visões e reversões, chegando sempre a ser mais fiel ao que desejou ser desde o começo. E é espantoso ver o quanto essas características já estavam bem desenhadas no autor de vinte anos de idade. O sarcasmo do Machado de Assis tardio, o ouvido para uma oralidade real e sui generis que só teria rival em Nelson Rodrigues, o espírito sardônico dos modernistas e o olhar atento do próprio Joyce para a mesquinharia e a beleza do cotidiano.

Bastam poucas páginas da abertura da novela para você se ver imerso no mais trevisaniano dos mundos. A bem da verdade, nem cabe falar em “páginas”; olha a abertura:

Era um barzinho muito igual aos outros, com uma folhinha na parede, dois pastéis frios detrás dum vidro e uma servente de avental muito sujo. Depois do terceiro chope, o barzinho tomou uns ares líricos de menina que leva um violino debaixo do braço, e eu sem querer fiquei com muita pena de mim. Teolindo Bragança escorropichou o copo e bramiu, com o seu vozeio que é um clamor de multidão:
— Fiquei mais sentimental que uma vaca.

Pra quem passou a vida lendo o escritor das “Novelas” virar o autor de “Abismo de Rosas”, tornar-se o cara que fez “Ah, é” e depois inventou “O maníaco do olho verde”, essa abertura é puro “Pico na veia”. É Trevisan concentrado: ridente, risível, ridículo, perfeito. Está tudo ali. Especialmente aquela estranhíssima sensação de se estar lendo algo que é ao mesmo tempo uma obra perfeita e uma paródia de si própria.

E era um moleque!!

Quer dizer, ele nunca deixou, nem aos 98 anos, de ser moleque. Mas aqui o moleque era piá de vez! (Aliás, o que dizer da felicidade adicional de ver a língua da minha família ali no livro: “umas par” de velas; “crendo os padre”…)

*

É mais ou menos conhecida a história do acidente na fábrica da família que hospitalizou, em 1945, o jovem Dalton que, radicalmente confrontado com sua aparente mortalidade (eu ainda tenho as minhas dúvidas…), decide então virar escritor de verdade. É a isso que se deveu aquela primeira edição da “Sonata”.

Menos fácil de entender é o improvável “acidente” que fez com que aquele guri, isolado por aqui, começasse sua carreira com tanta qualidade e com tanta molecagem.

Ele era safo. Como muito poucos.

Distribuiu quase toda a tiragem a órgãos de imprensa e críticos influentes (foi correspondente de um também jovem Antonio Candido), pagou anúncios que afirmavam que o livro era recomendado a toda a “Mocidade Cristã”, depois da inevitável reação de parte da imprensa que não gostou do tom e da matéria da novela. Mas é bom lembrar que esse rebote conservador e pudibundo na imprensa também não ficou sem uma violenta reação de certos articulistas que saíram em apaixonada defesa de Dalton Trevisan, e que assinavam seus artigos com suspeitosos pseudônimos que escondiam…. Dalton Trevisan.

Ele aparece quase prontinho naquela “Sonata” dos vinte anos, inclusive em termos de sua radical inserção no cenário mais amplo das letras nacionais, e também de sua pretensão desavergonhada de modernidade e de superação. A publicação de sua correspondência (um belo volume dela deve aparecer já no ano que vem pela Companhia das Letras) vai revelar o que muita gente já sabe: Dalton Trevisan foi e é um movimento literário de um homem só, bem conectado, antenadíssimo, influente e, pura e simplesmente, mais inteligente, mais matreiro e mais safado do que todos nós.

Corra lá dar uma olhada nesse livro, nessa obra de juventude de um escritor em formação (a novela tem suas escapadas em termos de estrutura e amarração, e ele percebeu rapidão que seu brilho estava nos capítulos individuais, nos contos), nessa demonstração cabal do quanto o garoto sabia mais que todo mundo já naquele momento.

Eu, de minha parte, vou só ficar torcendo pela presença constante dos morcegos que cruzam o ar da minha rua e mancham a reputação asséptica e falsa da Curitiba das propagandas oficiais, há quase um século abençoada e maculada pela presença desse geniozinho que é o nosso Vampiro.

Sobre o/a autor/a

1 comentário em “A volta do Vampiro”

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