A Cachorra, que poderia ser a humana

Livro de Pilar Quintana, fala da miséria completa da existência de duas fêmeas

O problema de usar o medo e a dor na modificação do comportamento é que o medo também está na raiz da agressão.

B. F. Skinner, “O Comportamento dos Organismos”.

Chirli era órfã. A mãe apareceu morta alguns dias depois de seu nascimento – as condições de sua morte não foram claras. Os irmãos de Chirli, um a um, tiveram o mesmo fim em um período curto de tempo. Ela era uma sobrevivente em sua linhagem e isso definiria seu temperamento. Mas também marcaria seu destino.

Sob a guarda de Damaris, ela cresceu, amadureceu, fugiu, reapareceu. Experimentou a floresta, andou em más companhias, criou desespero e tristeza. Seus movimentos deixavam Damaris em frangalhos, entregue ao desalento e assombrada pelas lembranças de outros momentos em que passava por situações parecidas. Suas relações – com o mundo, com as pessoas – iam se deteriorando na mesma intensidade em que elas se afastavam uma da outra.

Damaris queria um filho. Não teve. Acreditou que a cachorra, que apareceu de forma repentina em seu cotidiano e que viveu por meses em seu colo e, depois, em sua cola, seria sua chance de maternar. Batizou-a com o nome da filha que não pariu, inspirado por uma miss que ela conheceu na infância em um concurso exibido na TV; nada sabemos sobre o destino de Shirley. Chirli, a cachorra, foi punida repetidas vezes por ser demasiadamente canina. As dores de Damaris, excessivamente humanas, extrapolaram sua racionalidade. É sobre a existência das duas o livro “A cachorra”, da escritora colombiana Pilar Quintana.

“A cachorra” talvez fale, sim, de uma relação entre tutora e animal. Mas, aprofunda-se na miséria completa da existência de duas fêmeas: pobreza, abandono, humilhação, traumas, entre outras desgraças. Duas criaturas calcadas na dor, vivendo em um povoado isolado e assolado por intempéries. Traz à luz a visão sempre espantosa, ainda que conhecida, do quanto somos muito mais semelhantes do que diferentes de outros bichos, inclusive nos comportamentos que nos fazem mais humanos.

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O problema de usar o medo e a dor na modificação do comportamento é que o medo também está na raiz da agressão. No caso dos cães, morder, rosnar e avançar têm como objetivo criar distância de uma ameaça. A literatura científica dos últimos trinta anos mostra que cães submetidos a técnicas de treinamento “dominantes” ou envolvendo punição – palmadas, chutes, olhares, água borrifada, choque e coleiras com garras, enforcadores, gritos – têm os maiores índices de agressão. Esses cães também têm índices elevados de cortisol, sentem mais medo de humanos e a sua capacidade de aprendizado é inibida. – Em 1938, o psicólogo americano B. F. Skinner publicou “O Comportamento dos Organismos”.

Serviço

A Cachorra, de Pilar Quintana. Tradução de Livia Deorsola. Intrínseca, 160 páginas, R$ 39,90 (papel) ou R$ 22,90 (E-book).

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