Escritora portuguesa Lídia Jorge vem a Curitiba para falar de seus livros

Litercultura traz romancista celebrada para evento sobre "Os Memoráveis", obra que trata da Revolução dos Cravos. Participantes ganham livro de graça

Lídia Jorge é uma daquelas escritoras de mão cheia celebradas do outro lado do Atlântico e praticamente desconhecidas no Brasil. O Litercultura pretende ajudar a reduzir esse desconhecimento com um evento em que a romancista portuguesa será sabatinada por novos leitores em Curitiba. Os cem primeiros inscritos receberão de graça um exemplar de “Os Memoráveis”, um dos mais importantes livros da autora, publicado pela LeYa (veja detalhes ao fim da entrevista).

O Plural, parceiro do Litercultura no evento, entrevistou a escritora por e-mail. O tema principal foi justamente o livro que a traz a Curitiba. “Os Memoráveis” trata da Revolução dos Cravos, o momento catártico em que o povo português, sem derramar sangue, conseguiu se livrar da longa e tenebrosa ditadura salazarista, em 1974. Leia a seguir a conversa.

“Os Memoráveis” fala de um momento na vida portuguesa, a Revolução dos Cravos, que em breve completará meio século. O que parece à sra. que a nova geração pode aprender hoje com esses acontecimentos dos anos 1970?
Pode aprender alguma coisa de útil, sim. A gente sabe que cada geração tem de aprender à sua custa, mas sempre existe uma memória que a Arte e a História transmitem, e que acabam por ser espelhos reflectores provenientes do passado que iluminam o presente e o futuro. Os anos setenta do século passado marcam o início da democratização das sociedades que se operou ao longo de todo o último quartel do século XX. A Revolução dos Cravos aconteceu em 1974, dando início, precisamente, a esse período tão positivo na História recente. Tratou-se de uma revolução que marcou mais de meia centena de mudanças de regime que se operaram ao longo de vinte cinco anos, sobretudo na Europa, marcadas pelo princípio da Revolução sem Sangue. Em Lisboa, naquele célebre dia que todo o mundo celebrou, mudou um regime sem efusão de sangue, sob o signo de uma canção e tendo por símbolo um molho de cravos. Os jovens de hoje, não só os portugueses, aprendem com e evocação desse momento que nenhum povo está amarrado a um destino fatal, que ele pode mudar pela força de vontade das suas populações, e que o pode fazer sem selvajaria.

O livro tem um tom que talvez pareça estranho à maior parte da literatura contemporânea: a lembrança de bons momentos, de figuras que possam servir como bons exemplo, há muito deixou de ser a tônica da grande literatura. Pode ser que tenhamos perdido algo ao falar mais das catástrofes e do lado obscuro das nossas personalidades?
Depois do período Romântico que esmorece ainda no século XIX, a Literatura dos bons sentimentos deixou de ser importante. Creio que nenhum escritor que se preze, hoje em dia, quer voltar a esse princípio didáctico da Literatura como manual de boas maneiras. Eu nunca o fiz e nunca o farei. “Os Memoráveis” tem esse título porque os protagonistas, precisamente, não surgem como heróis intocáveis, nem os momentos vividos se prolongam na História com o seu brilho, antes esmorecem. Neste livro, os memoráveis são aqueles que merecem ser lembrados por alguma coisa que fizeram fora do comum, mas não pela sua perfeição. Esse livro fala precisamente da forma como a degradação dos ideais surgiu de modo congénito com a alegria da Revolução. A certa altura alguém até diz – “Uma revolução é uma alegria que anuncia uma grande tristeza”. Mas falar da catástrofe e da disrupção não significa em meu entender que a Arte que as veicula incite à escuridão. A Arte a Literatura erguem sobre os destroços da História a luz da Beleza. E essa sim, na minha perspectiva, essa é que é salvadora.

Não foi seu primeiro livro sobre o tema, e vi que na sua opinião o ponto de vista de “Os Memoráveis” mudou em relação às obras anteriores. Como esse romance se encaixa na sua obra?
É verdade, escrevi dois livros que têm como pano de fundo a Revolução de 1974, mudando de ângulo entre “O Dia dos Prodígios” publicado em 1980 e “Os Memoráveis” que tem data de 2014. Entre um e outro passou uma vida e um país que se transformou, evoluindo de uma estrutura social arcaica e ditatorial para uma sociedade democrática, livre e integrada na Comunidade Europeia. O livro de 1980 falava da imensa força de sonhar dos portugueses em contraste com a sua debilidade na concretização. O seu campo de acção era uma aldeia que em si resumia um país inteiro ainda fechado sobre si. “Os Memoráveis” falam da mesma revolução mas a partir do mundo amplo, uma retrospectiva mítica que corresponde a uma pós-memória dos jovens protagonistas modernos. Falo, pois, de uma evolução, mas a minha forma de narrar continua a ser idêntica, escrevo como se estivesse a construir uma longa crónica sobre o mundo que me tem sido dado viver e testemunhar, mas recusando o realismo que nos ata aos factos. Tomo-os na minha mão para criar uma outra história paralela onde a fantasia tem o papel de nos aproximar de uma outra realidade. Escrever é inventar um outro mundo, e ler esse outro mundo é partilhar em conjunto com muitos do desejo de sermos outros.

Embora sejamos irmãos de idioma, parece que a Literatura portuguesa contemporânea é pouco lida no Brasil, à exceção de uma meia dúzia de autores. Boas escritoras e bons escritores por vezes nem mesmo chegam a ser publicados aqui. Por que isso acontece?
Os nossos povos são pouco leitores, e por isso constituímos comunidades tocadas sobretudo pelos fenómenos culturais de massa. Os portugueses parecem contentar-se com as telenovelas brasileiras onde a perícia narrativa do género atinge níveis de sofisticação muito apreciáveis. E gosta do teatro brasileiro, e sobretudo, sobretudo, meu Deus, da música brasileira! A música brasileira, entre nós, só encontra rival na música anglo-saxónica. Isto é, a irmandade de que fala é autêntica, cantando. Mas os leitores portugueses também se interessam pela Literatura quando ela toca o panorama best-seller. E há tentativas sérias da parte dos editores portugueses e brasileiros para se proceder ao intercâmbio que falta. Veja-se o Prémio Oceanos e o Prémio Leya que vão fazendo o seu caminho positivo. Sempre digo que a Literatura é uma carta que se envia para longe. A espera é só por si um programa. É preciso ser próprio, ser verdadeiro e ter compreensão perante as escolhas dos outros.

O Brasil, assim como Portugal nos anos 70, e como tantos países hoje, viu recentemente sua democracia ameaçada. Há paralelos possíveis entre o momento narrado no livro e a crise das democracias de hoje?
Há um paralelo contrastivo. Se o último quartel do século XX, no qual o caso português assume um papel pioneiro importante, se caracterizou pela democratização das sociedades, este primeiro quartel do século XXI caracteriza-se pelo seu oposto, pela anti-democratização. Feroz anti-democratização, aliás, porque enquanto a tecnologia da comunicação baseada no forte poder do jornalismo informativo esclarecia os cidadãos do final do século XX, a comunicação digital de hoje promove a desinformações, baralha os dados, cria o mito do mais rude como o mais capaz, toda uma perversão de valores que nos está a destruir como civilização. Mas num aspecto existe uma paralelo que aproxima os dois momentos por semelhança – é que tal como aconteceu há cinco décadas atrás, também agora só se consegue manter um nível de decência democrática razoável se houver resistência ao desmando global a que estamos votados. Dos anos 70 provém o exemplo da resistência que nos deve dar esperança por imitação na diferença.

Revolução dos Cravos: movimento pacífico encerra ditadura em 1974

Há uma descrença em relação à capacidade de concentração dos jovens leitores, acostumados com as mídias sociais. A sra. quer se comunicar com ele na linguagem literária tradicional. Parece uma esperança vã?
De modo nenhum, a esperança de que os jovens continuem a ler narrativas longas sobre realidades transfiguradas continua intacta. A ruína que a nova mídia implica na degradação da leitura anuncia naturalmente que se vai regressar, mais tarde ou mais cedo, às formas culturais mais densas como seja o romance e o ensaio na Literatura ou a Música Clássica no âmbito da música. São artes matriciais, base da criatividade nas outras áreas. Eu acredito no instinto de sobrevivência da Humanidade, acredito no instinto da nossa própria superação. Mas não falo apenas por uma questão de fé, e sim na base da observação, pois enquanto uma grande maioria de jovens vive agarrada aos écrans que trazem no bolso, uma minoria que não sei quantificar, motivada por bons professores, e pela própria mídia especializada, está a forma-se tomando a leitura como base da sua formação. Diria que o que se está a passar é a derrota do sonho da minha geração que acreditou na utopia de que todos nascemos para ler, e que a escola apadrinharia essa transformação. Nati per leggere, era um programa italiano dos anos 90, por sinal mais conhecido no Brasil do que em Portugal. Mas não está a ser assim. No entanto, quando se perceber o erro em que se pode cair, eu creio que aquela divisa vai voltar a vigorar nos pátios das escolas. Ou estou muito enganada, ou a hora dessa consciencialização parece ter chegado.

Serviço
“Sabatina Litercultura com Lídia Jorge”
Quando: Dia 27 de agosto de 2023, às 11 horas
Onde: Museu Oscar Niemeyer – Auditório Poty Lazzarotto – R. Mal. Hermes, 999 – Centro Cívico, Curitiba/PR
Quanto: Gratuito.
Retirada gratuita de livros (limitada a 100 exemplares) na Divisão de Difusão Cultural da Biblioteca Pública do Paraná (BPP) – R. Cândido Lopes, 133 – Centro, Curitiba/PR. Horário de funcionamento: das 8h30 às 18h de segunda a sexta.
Mais informações
www.litercultura.com.br
@literculturafestival
facebook.com/litercultura

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