Escambau lança música feita a partir de um sonho com Júpiter Maçã

Banda curitibana faz homenagem ao gaúcho Flávio Basso, uma lenda do rock nacional, morto em 2015

No já longínquo ano de 2009, quando Giovanni Caruso – até então conhecido no meio musical pelo rock and roll debochado e juvenil dos Faichecleres – apareceu junto de sua nova trupe com o excelente álbum “Acontece nas melhores famílias”, muita gente afinou seus ouvidos pela expectativa de uma espécie de continuação do som de sua antiga banda (este autor incluso).

Mais do que um grande título, porém, em relação ao que seu principal compositor já havia experimentado em trabalhos anteriores, o debut do Escambau – que àquela altura ainda carregava o nome de Caruso no rótulo da própria banda, com algum sabor sessentista – prenunciava novos e estimulantes caminhos para a sonoridade do grupo que ali se iniciava. Isso porque, embora a crônica dos relacionamentos afogados em copos de conhaque e a forte presença das personagens femininas ainda fossem um traço marcante das composições, no plano instrumental, o som da banda já se mostrava muito mais atmosférico e sofisticado do que aquele praticado pelo antigo trio de Giovanni.

Ouça e repare: para além de um acento latino, que azeitou a medula inglesa de seu som, há na estreia do Escambau, uma sensação de desamparo (eu diria quase onipresente) que se transmite e se reforça a cada nova faixa, como se ali ouvíssemos um triste trovador moderno cantando suas dores num cabaré onírico, fugindo de uma chuva repentina mediante uma garrafa vazia ou um refrão emocionado. Não à toa, o tom de bolero que modela o seu desfecho (se não de fato, ao menos conceitual, com a canção “Kallandra’s Bar”), reorientando esteticamente a boemia artística dos roqueiros curitibanos.  

Onze anos se passaram e, agora, somente os mais desavisados e saudosistas se lembrariam de Giovanni Caruso somente por sua primeira banda. Mesmo porque, guardadas as inevitáveis diferenças de fundo, relativas às circunstâncias e ao papel do rock and roll na música brasileira atual, com uma discografia encorpada e um dos melhores repertórios da história do rock paranaense, o Escambau se tornou muito melhor e maior do que os próprios Faichecleres ousaram um dia ser.

Mas, vá lá, foi somente com o terceiro disco – o “Novo Tentamento”, de 2014 – que a identidade da banda enfim se cristalizou, abrindo uma clareira para toda uma nova gama de sons, influências e referências musicais que, de lá pra cá, os curitibanos consolidaram com os álbuns “Sopa de Cabeça de Bagre” (2017) e “Leite de pedra” (2019). Funk, soul, rock argentino, indie rock, psicodelia, crítica social & o escambau: Giovanni Caruso (voz e guitarra), Maria Paraguaya (vocal, teclado e percussão), Zo Escambau (guitarra), Yan Lemos (baixo) e Babi Age (bateria) formam juntos um dos mais criativos caldeirões musicais do rock brasileiro da última década.

Isso não é tudo. Para dar vazão à tamanha inventividade, a banda mantém uma produção constante, que impressiona pela regularidade. Essa característica se revela por meio da profusão de singles e EPs lançados aqui e ali, entre os registros de maior fôlego, de modo que os fãs dificilmente ficam muito tempo sem receber notícias da banda.

E é assim, entre múltiplas referências e uma disposição quase sobre-humana para compor e gravar, que chegamos à parada mais recente desta tour musical: a recém-lançada “Viagem Astral com Júpiter Maçã” – uma aventura sonora que homenageia um dos maiores ícones do rock brasileiro, certamente uma presença obrigatória na discoteca básica e na árvore genealógica do grupo paranaense.

Como qualquer outra coisa que envolva a arte de Júpiter Maçã (alter ego do gaúcho Flávio Basso), a história desta canção é uma pira muito louca. Conta Caruso que, certa noite, acordou de um sonho pitoresco (se não intranquilo, como aquele de Gregor Samsa, em “A metamorfose”): nele, encontrou-se com Flávio Basso (1968–2015) em um sótão de madeira e, ali, neste encontro onírico, seu ídolo o “presenteou” com uma canção algo psicodélica e circular, que o músico tratou de registrar em seu gravador tão logo lhe ficasse evidente o caráter evanescente de seu contato imediato com a lenda do rock gaúcho.

Trata-se de uma composição tão inusitada que seu próprio autor confessa ficar confuso quando pensa na autoria da canção, afinal, a música veio pronta do seu sonho, com uma melodia do além. O fato é que, sendo ou não uma canção do Júpiter Maçã, o Escambau não poderia desperdiçar um presente desses, generosamente ofertado pelo mundo dos mortos. Em meio à morbidez imposta ao mundo pelo vírus, a banda gravou a música alucinógena numa sessão ao vivo, preservando a atmosfera do sonho, e, em abril, lançou-a como single, com direito inclusive a um lado B, com a canção “O exemplo a ser seguido”, além de um belíssimo videoclipe, onde uma sequência de gravuras assinadas por Fábio Vermelho auxilia Caruso na tarefa de contar a história dessa canção metalinguística.

Achou pouco? Pois dessa cartola, ao que parece, tem muito mais delírio pra sair. Veja lá nas suas redes sociais e confirme: as últimas notícias do Escambau dão conta de que nem a Covid-19 atrasa o lado desse bando inquieto. Não obstante a depressão resultante de um isolamento boicotado pelas próprias autoridades do país – país que, nos últimos anos, parece ter se tornado uma legítima sopa de cabeças de bagre, com trilha sonora repetindo o hit “Não fui eu”à exaustão –, os rumores de arte e vida não cessam na “Cidade dos Normais”. E quem se arrisca a dizer que outros sonhos e viagens o Escambau ainda nos trará?           

Serviço

“Viagem astral com Júpiter Maçã” está disponível nos tocadores de música.

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