Documentário “Neirud” conta as histórias de amor da Mulher Gorilla

Uma narrativa muito pessoal faz do documentário de Fernanda Faya uma ótima surpresa no Olhar de Cinema 2023

“Neirud” tinha tudo para ser mais do mesmo e, surpreendentemente, não é. O documentário poderia ter ido pelo caminho mais fácil e terminar contando a história (ou as histórias) do circo no Brasil, o que já daria valor de sobra ao longa-metragem, mas a grande sacada foi não fazer isso. A cineasta Fernanda Faya e sua equipe encontraram algo mais singelo para levar à tela: um caso de amor homoafetivo, que serve como retrato de uma época, e ainda mostrar mulheres fortes em um picadeiro pouco conhecido e bem brasileiro.

E ninguém melhor que a “Fefa” (apelido da diretora) para documentar tudo isso em seu primeiro longa-metragem, pois o romance clandestino aconteceu bem próximo dela, na família. Neirud era a tia que morava com a avó da cineasta, contudo não era nem de longe só isso. O resgate da trajetória circense da família de Faya, ou melhor, das mulheres dessa família, é narrado em primeira pessoa no filme enquanto a cineasta investiga a vida dessa parente. Em seu primeiro filme, o documentário “One for The Road” (2016), a cineasta também falou de seus antepassados em primeira pessoa.

Neirud

A qualidade de “Neirud” vem do trabalho e retrabalho, e mais retrabalho, envolvido no longa-metragem. No bate-papo após a primeira sessão do filme na mostra Competitiva Brasileira do Olhar de Cinema, a equipe confessou o quão longa foi a produção e que, sim, “Neirud” correu sério risco de cair nas armadilhas do comum ou do irrelevante. Dez anos foram necessários para encontrar o que realmente é uma ótima história em um mundo de materiais e ainda acertar o tom para o cinema. Os destaques são a voz em off e uma sonorização que usa os silêncios com inteligência, além de momentos belos (com uma semiótica interessante, como a das bolas coloridas na praia), apesar de um pequeno desequilíbrio entre o volume de imagens de arquivo ao longo da montagem. 

Contudo, são os flashbacks da curiosidade nascida na infância da cineasta ao redor do elo familiar inexplicado com a pessoa e personagem “Mulher Gorilla” que resultaram em aplausos ao final da estreia do documentário. O caminho de Neirud não é muito diferente do traçado por outras mulheres de origem simples e negra de seu tempo. O filme mostra que ela fugiu ainda criança da oferta de uma vida melhor que não passava de serviço doméstico pesado e não remunerado, trabalho infantil mesmo. Chegou à cidade grande e caiu em condições não muito diferentes da anterior. Ali conheceu o circo e foi embora com ele, encantada pela arte popular e com a perspectiva de novas aventuras. A vida na estrada seria difícil. Mas o que havia sido fácil até então?

Mulher Gorilla

É no picadeiro que ela conhece Nely Tereze Faya – avó da cineasta que entre outros feitos foi atriz da Companhia Bibi Ferreira de teatro – e depois assume o nome artístico “Mulher Gorilla”. No filme, a gente conhece o amor das duas que, apesar de evidente, não era comentado. Era uma daquelas coisas que tantas famílias brasileiras empurravam para debaixo do tapete, um fato silenciado com o maior jeitão de elefante na sala. Mais uma surpresa é que ainda tem outro capítulo clandestino da história dos picadeiros brasileiros em cena.

Esse cenário me jogou na lona. Eu até sabia da ligação entre os anos de glória do circo no Brasil com o teatro, algo que aparece em certa medida no documentário, mas nunca prestei muita atenção ao “Telecatch”. O solavanco veio também porque recentemente assisti à série da Netflix “Glow” (Gorgeous Ladies of Wrestling)” e estava achando o enredo inovador, com uma troupe de luta livre feminina. A ingenuidade não deve ser só minha, muitos espectadores estão pela primeira vez diante dessa parte da história do circo brasileiro, mais um capítulo da arte nacional – junto do protagonismo das mulheres – que era ignorado. 

Olhar de Cinema

O documentário dirigido por Fernanda Faya (Brasil, 2023, 71 minutos) foi exibido na mostra Competitiva Brasileira do 12º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, nos dias 15 e 16 de junho. Outras informações sobre a programação do festival, aqui

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