“Dinamite: uma tragédia em Curitiba” conta história da explosão de 1976

Jornalista Anna Carolina Azevedo reconstrói os fatos do dia 2 de setembro de 1976, quando um caminhão carregado de dinamites explodiu no bairro no Cabral

O livro “Dinamite: uma tragédia em Curitiba”, de Anna Carolina Azevedo, conta a história do caminhão carregado de dinamites que explodiu em Curitiba no dia 2 de setembro de 1976. A explosão ocorreu no Cabral, mas repercutiu em toda a cidade e nas memórias de quem viveu esse dia e, nas décadas seguintes, na imaginação de quem ouviu a história.

Azevedo faz parte do grupo que ouviu falar da história – contada pela sua mãe. No livro, a autora lista sistematicamente os personagens dessa história, procura ouvir o que estão vivos e pesquisar sobre que não estão. Todas essas histórias convergem para um fato: a explosão.

Um projeto de pesquisa na universidade, concluído em 2009, deu origem a “Dinamite: uma tragédia em Curitiba”. Agora, o livro ganha uma segunda edição, revista e ampliada, em versão digital e gratuita. Essa nova edição tem apoio da Fundação Cultural de Curitiba e a obra será distribuída nas Casas de Leitura da cidade. Você pode acessar e baixar o livro sem pagar nada, clicando aqui.

A seguir, leia um trecho, escolhido por Anna Carolina Azevedo para o Plural.

Bombeiros trabalham em meio ao cenário de destruição deixado pela explosão. (Foto: Divulgação)

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O caminhão Mercedes-Benz

Após ter saído da Pol Paraná, o caminhão da Expresso Catarinense deixou o município de Colombo. Já em Curitiba e com a dinamite na carroceria, Donato guiava em direção ao centro da cidade, trafegando pela via rápida a uma média de 50 quilômetros por hora. Velocidade um tanto quanto rápida para um caminhão de cargas. A suposta pressa tinha motivos: a tarde estava quase no fim e o veículo já estava bem pesado. Mas ainda era preciso fazer o carregamento de móveis no depósito da Hermes Macedo. 

No caminho até o Centro, tantos bairros. Santa Cândida, Boa Vista, Bacacheri, Cabral. Retas, curvas, descidas. Havia muitas casas ao redor da via rápida.

Às 16h10, o caminhão cruzou a Doutor Manoel Pedro, rua que assinalava a fronteira entre Ahú e Cabral. Logo adiante, estavam as intersecções da São Luiz com a avenida Anita Garibaldi (à direita) e com a rua São Pedro (à esquerda). Naquele cruzamento, havia um sinaleiro e também um grande outdoor que exibia uma propaganda dos cigarros Continental, “a preferência nacional”.

Em direção ao sinal, a São Luiz se acentuava em uma pequena subida. Nas margens da rápida, dezenas de casinhas se espalhavam tanto de um lado quanto do outro das calçadas. 

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Em uma dessas casas, morava o casal Doroti e José Armando Gonçalves. Àquela hora da tarde, ele trabalhava numa oficina de carros no Boa Vista, onde era pintor. Ela cuidava de seus dois bebês: a recém-nascida Anelise, de 25 dias, mamava em seu peito; o pequeno Maurício, pouco mais de um ano, engatinhava em frente à cama. Mãe e filhos estavam no quarto do casal. A casa dos Gonçalves ficava à margem direita da São Luiz, poucos metros depois do cruzamento da rápida com a Doutor Manoel Pedro.

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O caminhão com dinamite seguia pela via rápida e estava prestes a terminar de atravessar o quarteirão repleto de moradias. Foi quando Ademar, um dos rapazes que estava na boleia, olhou pelo retrovisor direito.

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No percurso de volta, o fuque branco da redação de “O Estado” seguia pela avenida Paraná, conduzido pelo motorista Orlando. Quando próximos à caixa d’água do Boa Vista, os três rapazes ocupantes do carro notaram um rolo de fumaça que invadia o céu.

— Não olhem pra lá! Vai ser mais um serviço pra gente! Entenderam? Vocês não viram aquilo! — disse Juca, o repórter, brincando com seus colegas de jornal.

Eles tinham pela frente mais duas coberturas para cumprir. Mas os três, ainda assim, seguiram em direção ao Alto Cabral. Parecia que a vontade por um furo de reportagem havia apanhado Juca, Célio e Orlando. Só não podiam imaginar o porvir reservado para o quase fim de tarde de quinta-feira. Estavam a um quilômetro e meio do foco da fumaça.

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Depois de João Gbur, Jovino do Rosário e Belém, a via rápida norte-sul agora se chamava São Luiz. Romildo Ball, o funcionário do Santa Mônica, em sua Vespa, notou algo estranho no horizonte de sua rota. Corria pelo ar uma fumaça densa e branca, que parecia vir da Central 52 da Telepar. Curioso, seguiu até se aproximar o suficiente para ver que a fumaceira emergia de um incêndio em um caminhão Mercedes-Benz.

“Vai explodir”!

A imagem do espelho retrovisor direito, ainda que nítida, não parecia real. Não poderia ser real. O carregador Ademar percebeu que a parte inferior da carroceria de seu caminhão estava, por razão a ele desconhecida, tomada por chamas. Em desespero, avisou seus colegas. Não havia outra opção a não ser parar o veículo, pular da cabina e correr para longe dali. Certamente, não demoraria muito para que o fogo alcançasse as 62 caixas de papelão cheias de cartuchos de dinamite.

O motorista Donato, então, parou o caminhão à pista da direita da via rápida, a uns quatro ou cinco metros antes do sinaleiro e do anúncio de cigarros. Desligou o caminhão. Pulou da cabina. E correu. Os dois outros ocupantes, os carregadores Edson e Ademar, se apressaram e fizeram o mesmo. Apenas correram.

Em direção contrária ao fogo e à fumaça imponente, cada um dos três tomou um rumo diferente. Eles precisavam avisar o maior número de pessoas que uma explosão estava prestes a ocorrer. Ademar subiu a São Luiz aos berros:

— Saiam daqui! O caminhão tem dinamite e vai explodir! Vai explodir!

Donato se dirigiu à Climax, que ficava logo adiante de onde parou o caminhão. Na loja de roupas, pediu para usar o telefone. Queria acionar o Corpo de Bombeiros. Porém, a essa altura, Ligia, a dona da malharia, e sua funcionária, Ana, já estavam ao telefone. Não foi preciso o aviso do motorista para que as duas, assim como as demais funcionárias, percebessem o fogo a poucos metros dali.

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Pouco antes das 16h15, o ônibus do agente penitenciário João Mateus ainda não havia chegado. De repente, uma movimentação na rua irrompeu a calmaria. A duas quadras do presídio, um caminhão era tomado por labaredas, que provocavam um rastro de fumaça no céu. Ao ver os sinais do lume, o homem seguiu para a São Luiz.

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De dentro da fábrica de pincéis, ouvia-se a voz distante e retorcida de um homem aos berros: era um dos ajudantes do caminhão. Ele corria em direção ao grupo escolar Alto Cabral, ao lado da igreja. Mais alguns momentos e as crianças sairiam da escola. Ele precisava evitar isso de alguma forma; nem que fosse aos clamores desesperados. Além disso, o Supermercado Real, que também estava ao lado da igreja, por certo estaria cheio. E estava: naquele momento, cerca de cem pessoas ocupavam o estabelecimento. A maioria dos funcionários da fábrica — ainda que fosse possível escutar os clamores de um dos ajudantes do caminhão — e daqueles que estavam no Real sequer sabia o que se passava quase em frente ao barracão da Pincéis Pavão.

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Com o fogo instaurado, estavam dados o desespero, o tumulto e o alarde. Os 600 quilos de cola queimavam intensamente na carroceria do caminhão. Muitas pessoas que estavam próximas não saíram de perto. Ao invés de fugirem, resolveram conferir o que estava acontecendo. Eram movidas por mera bisbilhotice ou pela vontade de serem úteis. Elas, ao visto, não confiaram nos clamores desesperados de Donato e de seus ajudantes. Ou sequer os escutaram, devido à gritaria e ao zum-zum-zum. A rua estava tomada por uma imensa multidão que se aglomerou ao redor das chamas do Mercedes-Benz azul da Expresso Catarinense.

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Finalmente o carro da redação de “O Estado” chegou à São Luiz, já com o incêndio consumado. Orlando, o motorista do jornal, encostou o fuque branco em frente ao Edifício Antares, um predinho de três pavimentos, na esquina do cruzamento da via rápida com a Doutor Manoel Pedro. O caminhão estava logo em frente, a 60 metros, no quarteirão de cima. O repórter Juca e o fotógrafo Célio sequer esperaram o motor do carro desligar. Logo saltaram do Fusca para conferir de perto o fogo no caminhão. Célio, antes mesmo de sair, colocou a disparar sua Pentax, a câmera fotográfica companheira de trabalho. E foi fotografando cada instante daquele incêndio. Já Juca correu para tentar apurar informações. Qual seria a causa das chamas? Havia feridos? Onde estava o motorista?

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Jandira Piegel Dalunga deixou a sala depressa, intrigada com o que estava acontecendo a uma quadra do portão de seu quintal. Saiu para a rua e logo percebeu o estranho movimento que se passava ali. Ela, uma viúva de 48 anos e mãe de gêmeos, morava na casa verde de madeira que ocupava o número 205 da Doutor Manoel Pedro. Levada pela curiosidade, seguiu até a esquina. De lá, localizou as chamas que consumiam um caminhão.

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O carcereiro João Mateus se dirigia ao local, pensando que poderia ajudar de alguma forma. No breve caminho que separavam o ponto de ônibus e o veículo incendiado, ele se deparou com o repórter Juca. Os dois trocaram algumas palavras em uma breve conversa.

— Vai acabar acontecendo uma tragédia com esse caminhão, né? — comentou João Mateus.

— Fui lá tentar saber de alguma coisa. Parece que ele tá carregado de dinamite.

Metros adiante, um rapaz voltava da Climax, a loja de roupas. Era Donato, que insistia em chegar próximo ao caminhão.

— Eu preciso buscar meus documentos e os documentos do caminhão também!

Os populares tentavam convencer Donato a não se aproximar do fogo que, sem demora, já alcançava o carregamento de dinamite. Todos precisavam sair dali, mas Donato insistiu em seguir até o foco das chamas, que ardiam amarelas.

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Àquele instante, em meio à iminente tragédia que se estampava, o ônibus da linha Barreirinha dobrava a esquina da Rua Sebastião com a Anita Garibaldi e se aproximava de seu ponto em frente ao presídio. Porém, João Mateus, que antes o esperava, agora já não estava mais ali.

O incêndio no caminhão durava cerca de sete longos minutos.

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Em Curitiba, 16h20.

Um barulho ressonante e estrondoso fez calar a multidão.

O chão sacudiu, num enérgico tremor de terra.

Em um piscar de olhos, a paisagem ao redor se transformou.

A via rápida foi tomada por pó, calor, fumaça e destruição.

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Livro

“Dinamite: uma Tragédia em Curitiba”, de Anna Carolina Azevedo. Livro digital gratuito, 148 páginas. Para acessar e baixar o livro, clique aqui.

Sobre o/a autor/a

10 comentários em ““Dinamite: uma tragédia em Curitiba” conta história da explosão de 1976”

  1. Daline Schier da Cruz

    Minha mãe, meu irmão e minha irmã estavam a poucos metros da explosão. Minha mãe chegou a conversar com o motorista oferecendo o extintor do seu carro para apagar o fogo, quando ele avisou que era dinamite e ia explodir. Dito e feito!

  2. Lilian Ruth Bozzi de Sá

    Eu morava no Juvevê, à época, na Av João Gualberto, ao lado do Mercadorama. Ouvimos o estrondo e foi horrível. Minha cunhada que morava na Rua Machado de Assis, também no Juvevê, consternada com o acontecido, acolheu duas moças acometidas subitamente por surdez, pois estavam ao lado do caminhão na hora da explosão

  3. Lembro deste dia. Saí do cursinho na Vicente Machado pra pegar o onibus Vila America no centro, ao lado do Sesc Paço da Liberdade. Morava ao lado do trilho do trem, divisa Bacacheri/Cabral. Só consegui pegar o onibus pra casa de noitinha. E, em casa, os vidros do pavimento superior que davam pra hoje Avenida Paraná, quebraram todos.

  4. Caramba !! Eu estava no grupo escolar dr.Anibal Duilio calderari e escutei a explosão!! Mas não sabia o que era ,só mais tarde fiquei sabendo

  5. Iran Ribeiro dos santos

    Eu tinha 15 anos, estava jogando basketebol na escola Omar sabbag no cajuru, vilas oficinas, quando escutamos um grande estrondo. Paramos e ficamos perguntando o que seria aquela explosão. Ao chegar em casa o jornal falava sobre a explosão do caminhão com dinamites. Toda vez que eu passo na Rua São Pedro, lembro deste dia. Um tempo depois o motorista do caminhão, veio a falecer por causa de um acidente de trânsito com sua motocicleta no bairro Rebouças.

  6. Wilson Merlo Pósnik

    Achei interessante essa matéria, nos seus pormenores. Vivenciei, à distância, outra grande explosão, acho que 10/10/1969, às 07;20h. Localizei a notícia, na 1a. página do ‘Diário do Paraná’, de 11/10/69. Morava no Hugo Lange, na casa dos meus pais. E acordei sobressaltado, com a janela de ferro do meu quarto, balançando, violentamente. Levantei. Olhei para fora e o dia se prenunciava claro, calmo e ensolarado. Só depois de umas horas, fiquei sabendo o que ocorrera, na fábrica Britanite, localizada no km 10 da BR 116, em Tatuquara. Uma explosão, que produziu enorme cratera, durante o processo de mistura de substâncias, na fabricação de dinamite e que resultou em uma morte e três feridos, entre empregados da empresa.

  7. Rosicler Regina Bom dos Santos

    Eu morava na Manoel Pedro em frente da casa da Jandira Pigel, quase esquina com a rapida. Perdi minha casa. Meus filhos estavam na Escola gracas a DEUS. Eu havia saido poucos minutos antes da explosao para pagar uma conta da SANEPAR. Coisas do destino. Minha empregada tava em casa com seu filhinho de 1 ano. Dormia no berco onde cairam varias telhas. Foi socorrido no Hospital Sao Lucas nas proximidades. O trauma permanece vivo na lembranca. Mudei pra casa de minha irma e comecei tudo de novo. Muito triste.

  8. Eu estive no local da explosão, vi a fumaça de longe pois fazia uma entrega na empresa de ônibus na av. Paraná, e como tinha que ir até a Mateus Leme fazer outra entrega o caminho era a via rápida, chegando próximo na Manoel Pedro, estacionei a Kombi pra ver o que estava acontecendo. Mal tranquei a Kombi houve a explosão que foi muito forte, tanto que várias casas desavaeam. A Kombi ficou toda destruída o teto afundou, a lateral esquerda entortou toda, as portas lateral direita e tampa traseira estudaram pra fora. Vi que tinha uma pessoa xaisa no asfalto e mancha de sangue no asfalto. Parecia uma chuva de meteoros caindo do fragmentos do caminhão. Apavorado sai de lá rapidamente e voltei pois tinha que acionar o seguro da kombi eu fiquei uns 15 dias com o ouvido zunido. Por muita sorte não tive nenhum ferimento.

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