Com “O passageiro”, Boschwitz escreve a quente sobre perseguição aos judeus

Descoberto 80 anos depois de ter sido escrito, “O passageiro” cria um suspense angustiante ambientado nas vésperas da Segunda Guerra Mundial

À primeira vista, “O passageiro”, de Ulrich Alexander Boschwitz, pode ser lido com um thriller. O personagem está tentando fugir da Alemanha e pensa em fazer isso pela fronteira com a Bélgica. Mas quando você começa a fazer perguntas simples como, por exemplo, por que ele está fugindo? A história fica muito, muito mais complicada.

Isso porque Otto Silbermann, um homem de negócios bem-sucedido, já sexagenário, não sabe exatamente de quem – ou do quê – está fugindo. As respostas para essas perguntas são nazistas e nazismo, mas elas não estavam tão claras para o judeu Silbermann em 1938, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, quando sua casa foi visitada por alemães “do partido” e, como consequência, sua esposa, seus amigos e seus conhecidos disseram que era melhor ele ir embora. Para onde? Ele não sabia. Mas era preciso evitar ter o mesmo destino de outros judeus que foram presos e perderam tudo. E é o sentimento de confusão de Silbermann que Ulrich Alexander Boschwitz descreve com habilidade neste romance escrito a quente em 1938, quando o autor tinha apenas 23 anos.

Ulrich Alexander Boschwitz

A história de Ulrich Alexander Boschwitz (1915–1942) é um drama à parte. Nascido em 1915, pouco depois da morte do pai, Boschwitz fugiu da Alemanha com a mãe para a Inglaterra, a fim de escapar do progrom, a perseguição aos judeus que teve como marco a chamada Kristallnacht, a Noite dos Cristais, em novembro de 1938.

Em território inglês, ele foi considerado inimigo, assim como outros alemães que escaparam do nazismo, e acabou sendo preso e enviado à Austrália, na Ilha de Man. Ao ser liberado da prisão, e na volta para a Inglaterra, seu navio foi torpedeado por um submarino alemão. Todos no navio morreram. Boschwitz tinha 27 anos e acredita-se que ele morreu carregando consigo outros trabalhos.

“O passageiro”

No posfácio de “O passageiro”, assinado pelo editor Peter Graf, ele conta que soube do livro pela sobrinha do autor. O manuscrito de “O passageiro” estava guarda no Arquivo do Exílio da Biblioteca Nacional Alemã, em Frankfurt.

Graf viajou até lá para ver o manuscrito e relata que foi “rapidamente cativado pelo texto”. Para o editor, o romance representava “a mais antiga documentação literária” sobre as atrocidades ocorridas entre 7 e 13 de novembro de 1938, na Alemanha e na Áustria. Graf leu o livro pela primeira vez no Natal de 2015. A primeira edição de “O passageiro” foi saiu em 2017, quase oito décadas depois de ter sido escrito.

Kafka

Boschwitz foi comparado a Franz Kafka (1883–1924) e, de fato, o sentimento de ser inexplicavelmente oprimido pelo sistema lembra bastante “O processo”. “É um estado totalitário e está se voltando contra mim, contra mim!”, diz Silbermann.

O livro tem diálogos marcados por uma formalidade que se supõe característica de uma conversa entre pessoas estranhas na primeira metade do século 20. Essa formalidade parece contribuir ainda mais para isolar o protagonista. Há um jogo de aparências em que ele não pode revelar quem é: um judeu, mas com aparência ariana. Essa aparência ariana é destacada mais de uma vez ao longo da história como uma “vantagem” de Silbermann, como uma possibilidade de sobreviver.

Sem nenhum plano claro, e sem saber exatamente o que está fazendo, Silbermann vai para Hamburgo, depois Aachen (na fronteira com a Bélgica), depois Berlim, depois Munique… E assim uma parte considerável de “O passageiro” se passa dentro de trens. Silbermann parece que está sendo arrastado de um lado para o outro, sem convicção de nada, sem entender exatamente o que se passa.

Desorientação

O mais impressionante de “O passageiro” é como o texto de Ulrich Alexander Boschwitz e a tradução de Gisele Eberspächer conseguem reproduzir a desorientação de Silbermann. Não é algo que se possa pinçar do livro com uma frase ou duas. É mais um efeito que a leitura causa, uma sensação que ela deixa. E como o texto é ágil, você avança rápido pelas páginas, como se tentasse escapar dessa sensação angustiante. Mas não parece haver uma saída.

“A vida requer coragem”, diz Silbermann. “O suicídio requer apenas desespero.” Mas a história chega a um ponto em que não há nada além de desespero.

Livro

“O passageiro”, de Ulrich Alexander Boschwitz. Tradução de Gisele Eberspächer. DBA, 288 páginas, R$ 59,90. Romance.

Sobre o/a autor/a

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