Dentro daquela vala tinha tanta gente que nem gente eles eram mais

O Plural está publicando os cinco melhores contos selecionados pelo júri do Festival Jacaré. Este é o segundo lugar

Conto de Bruno Henrique da Cunha

Garoou agora há pouco. Parou não faz nem dez minutos. O tempo podia até estar mais fresco, porém ainda se sentiam os efeitos do sol das nove às três. Me achego da beirada da vala. Olho para baixo. Já não me importo com a vista. Já perdi a sensibilidade faz tempo. Desde antes da pandemia. Continuo olhando para baixo. Para o entulho orgânico. Centenas de amontoados. Centenas de bocas banguelas entreabertas. Línguas cozidas a nuvens de gás. Olhos esbugalhados. Dedos atrofiados. Quem pensou que estaria livre da exaustão ali dentro daquela vala só pelo fato dela ter sido cavada na terra nua, ah, quem pensou isso se enganou. E eu continuo olhando para uma ou outra poça de sangue escuro. Garoou agora há pouco, parou não faz nem dez minutos, e aquelas eram as únicas poças que tinham sobrado. Garoa fraquinha demais. Eu olho para aquelas peles que, independente da quantidade de melanina em vida, dentro da vala pareciam todas feitas de queijo coalho estufado a peido de batata-doce. Nunca conheci ninguém que pudesse com aquele gás que a China Comunista tinha inventado. Todas aquelas peles, todas nuas, todas cruas, todas inertes. A inércia é a pior das violências. Mesmo cercado de brutalidade, é difícil para mim ver um ser humano reduzido a presa sem nem ter capacidade de reagir. Agora há pouco um abutre arrancou o olho de uma mulher. Nem parar de garoar tinha parado. Os abutres ainda estão chegando, se fortalecendo. Os cadáveres não foram depositados há tanto tempo, as marcas da retroescavadeira continuam visíveis, no chão perto de mim há vários riscos sobrepostos, e a julgar pelo que eu vejo daqui de cima os vermes ainda se fartam com os órgãos internos. À superfície, nuvens pontuais de minúsculos mosquitos rodeiam qualquer buraco em qualquer pele rachada que elimine um tanto a mais do cheiro de podridão que o meu olfato aprendeu a ignorar desde antes desse inferno. Não preciso mais daquelas máscaras. Me recuso. Olho para baixo de um jeito que eu não consigo desviar. Meu coração arde, ramificando meu sangue, ovacionando os caminhos venosos do meu interior. Por fora, estou inteiro. O que sobrou do meu coração é uma bola de chiclete murcha por cima de um beiço rachado que acabou de cantar a mais perfeita canção que um cérebro é capaz de pensar.

Henrique, eu te amo. Te amo, te amo. Você sempre soube que eu te amo. E eu quero que você saiba de uma coisa. Eu duvido que vou conseguir te resgatar dessa vala. Sinceramente. Nem ver você eu estou conseguindo ver. Mas eu assumi uma missão. Independente de quem eu conseguir puxar para fora desta vala, vai ser como se eu estivesse puxando você, Henrique. Só de lembrar de você foi o suficiente para apertar a cortiça suarenta dessa corda entre meus dedos. Sabe, eu coloquei tanto carinho nesta forca que eu confeccionei… Como se fosse a minha própria forca, como se fosse a forca do meu próprio carma. Foi dureza, Henrique. Você sabe. Pra cada dez caminhões de refugiados congestionando a marginal eram no máximo duas das nossas Fiorinos com os cilindros de oxigênio. Sinceramente, Henrique, quando o governo decidiu escoar nosso povo pras regiões de fronteira, eu confesso, eu até achei uma atitude bem louvável, mas agora eu nem sei o que achar.


Henrique, hoje eu comi muito decentemente. Entornei um café fraco dentro de uma canequinha de lata e enganei a fome com três bananas. Meu braço direito está tremendo, mas nem tanto. Minha cabeça não, ela está doendo mais do que o habitual. Aqui na lateral. Do jeito que eu sempre falava pra você que doía, Henrique. Mas sendo sincero, que se foda. Preciso fazer isso logo. Nem tomo distância para atirar a corda dentro da vala. Nos corpos que estão por cima da pilha, os mais óbvios, eu laço maxilar, rabo-de-cavalo, coxa, joelho, tatuagem e virilha. A garoa já tinha secado, mas um ou outro fluido que escorre poros afora já tinha feito uma meleca e ia atrasando minha operação. Eu sei que uma forca de arame me serviria bem mais contra essa linfa ensaboada, essa merda que não seria capaz de segurar nem um bezerro. E conseguir arame nem é tão difícil. Sobraram uns metros de cerca aqui por perto. Porém, a essa altura eu sei que você já entendeu tudo, Henrique. Uma forca feita de corda ia ser perfeita para o que eu planejo fazer depois de tirar você daí.

Tremedeira do cacete. Há semanas que eu não via nem a cor de um leite, meio copo americano que fosse, leite encorpado com farinha e amornado no fogareiro, o mesmo fogareiro onde uns do pelotão esquentavam a ponta da caneta pra mandar carta pra casa e onde outros incendiavam a ponta da palha de milho recheada com tabaco enrolados de um jeito que a família nunca descobriria. A juventude tem dessas. Ninguém melhor que você pra prestar atenção nessas coisas, Henrique. Eu seco as mãos na calça. Com o máximo de força que eu disponho, lanço a corda longe na infinitude da vala. Senti a corda resistente lá pela décima puxada de volta. Tiro a sorte grande. Tinha pescado pelo pescoço um cadáver do sexo masculino. Aperto os olhos, conferindo se era mesmo do sexo masculino. Naquela montoeira de pentelhos, do jeitinho que estava na moda, nunca se sabe o que tem por baixo da pelama, né. Mas era homem sim, Henrique. Ao menos isso. Se esse cara foi gay ou se foi hétero, não me interess. Essa pessoa tem um pênis, uma protuberância reprodutora como a sua, Henrique, ovos iguais aos seus, e isso é tudo que me vale. Me concentro e te puxo até o barranco, com cuidado para não arrebentar a sua pele, Henrique. Vai saber o que tanto gás chinês fez com os teus pulmões.
Inocentes fomos nós, Henrique, em pensar que a investida da China Comunista ia parar na dispersão daquele vírus. Desde que nós nos separamos eu vi muita coisa nessa pandemia. Eu vi campeão de pôquer saqueando mercadinho de bairro, Henrique. Eu vi gente conhecida canibalizando o pastor alemão da família, gente se rebaixando às categorias culinárias dos próprios chineses vítimas da China Comunista. Uma nação que não respeita seus cidadãos não merece ser rotulada como tal, Henrique. Você sabe bem de tudo isso.


‘‘Quando me perdi, você apareceu, me fazendo rir, do que aconteceu. E de medo olhei, tudo ao meu redor, só assim enxerguei, que agora eu estou melhor. Você é a escada da minha subida, você é o amor da minha vida, é o meu abrir de olhos do amanhecer, verdade que me leva a viver. Você é a espera na janela, a ave que vem de longe tão bela, a esperança que arde em calor, você é a tradução do que é o amor’’


E enquanto eu encurtava nossa distância naquele barranco filho da puta, um som em particular não saía da minha cabeça. Aquela música do Cogumelo Plutão que você custou a aprender a dedilhar, Henrique, e quando você finalmente conseguiu eu fui a primeira pessoa pra quem você contou, correndo, segurando o violão igual um troféu, somando isso à emoção da volta das nossas aulas presenciais. Um dos muitos dias inesquecíveis. De repente, outro som se sobrepõe ao Cogumelo Plutão. Vêm de baixo da beirada uns estralos, coisas saídas das entranhas da pilha. Levando em consideração meu estado de nervos, isso pode muito bem ser só alucinação, mais uma a qual meu cérebro era submetido nessa pandemia. Seja como for, puxo seu corpo com mais afinco, Henrique, nem secando a palma das mãos pra não perder tempo. E os estralos iam aumentando e com eles subia um flato satânico, um cheiro de cabelo e de osso queimado. Nos primeiros nós de fumaça, entro em desespero, empreendo mais força nas puxadas, meus dois braços tensos igual mármore mas eu não reduzo, puxo, aperto os olhos, mordo os lábios até sangrar, tudo pela minha missão, te tirando dali, as costas da minha camisa empapada de suor, a testa e as bochechas também, mas eu não posso desistir. Eu já tinha ido longe demais para desistir.

Além do mais, a ironia crudelíssima. ‘‘A esperança que arde em calor, você é a tradução do que é o amor’’, né. Enfrentar o sadismo de Deus era questão de honra.


Cá entre nós, ver na prática o efeito dos gases corporais represados por centenas de máscaras te faz levar a sério tudo que nem a mídia alternativa tem coragem de filmar de perto, Henrique. À beira da vala, quando quase toda a corda havia sido puxada, eu vejo a verdade. Não era só cheiro. Não era só fumaça. Era um fogo-fátuo que a decomposição tinha acendido e que já tinha carbonizado os cadáveres mais desnutridos. Tinha uma bola de fogo adulta no céu e tinha outra se formando dentro daquela vala. Um calor incompatível com a vida. Em vez de magma luminoso, era sangue com carência de todas as vitaminas existentes. Claro que na hora ninguém faz essas suposições científicas. A gente não raciocina. Apenas reflete o que o ambiente dá. E o som de uma mandíbula pipocando a temperaturas extremas tem o poder de ocupar todos os pensamentos de um ser humano que conserve o mínimo de sobriedade.

Mas é aquilo, Henrique. Apesar dos jornais sempre terem nos alertado da perversão da China Comunista, nunca parece real até se experimentar. O inferno ao menos me faz puxar com mais força. E funciona. De início eu vejo o seu cadáver apenas das espáduas para cima. Meu querido Henrique. Puxo o resto para o nível dos meus pés, te mantenho deitado, te observo cuidadoso e realizado pela ausência de vermes escapando de seus orifícios mas, eu te confesso, Henrique, ao mesmo tempo me segurando para não vomitar as bananas mergulhadas no café. Me perdoa. Nem tudo consegue ser remediado pela insensibilidade.


Você lembra, Henrique, do ódio em comum que nós tínhamos pelo nosso tenente, aquele merda que apontava pra Rússia no mapa quando falava da China Comunista, o traste dormindo uniformizado no aparelho de ginástica daquela pracinha, máscara pendendo no queixo, embalado pelo alarido da sirene, nosso constrangimento em ter que ir acordá-lo, e logo que o puto despertou já atribuiu a sonolência ao barulhinho bom dos passarinhos, se espreguiçou, tensionou a pança, esticou os cotovelos, do jeito que tanto eu quanto você sabíamos que lembrava seu pai, Henrique, e estralou os dedos, aqueles dedos que a gente sabia que não iam demorar a serem enfiados na calça da farda para tirar as pelotinhas de papel higiênico encalacradas nos pelinhos do rego.

E mal dava pra acreditar que era praquele tenente de merda, praquele falso patriota, praquele politiqueiro de bosta que nós éramos obrigados a bater continência com os nossos dedos obrigatoriamente asseados, dedos que seccionavam o nosso rolo de papel higiênico racionado que, acaso não conseguíssemos, tínhamos de adiar a vontade de cagar. E agora olha só. Seus dedos eram os dedos de um cadáver, Henrique. Pálidos, garatujas de carne esquálida, fímbrias inertes, dois quintetos de dedos que só não tremiam como os meus porque nada de substancial corria em seu interior, dedos com terra embaixo daquelas unhas crescidas a desespero e paranoia.

Lembra, Henrique, lembra de que você era o único do nosso pelotão que gostava de LS Jack? Música antiga sempre foi sua praia, né? E eu lembro como você ficava puto quando eu falava que música do começo dos anos 2000 era antiga, mesmo eu sendo bem mais velho do que você. Coisas da vida. Eu arrasto o seu cadáver enforcado pelos braços até um punhado de árvores que uma pessoa sozinha nunca conseguiria abraçar. Eu nunca soube o nome dessas árvores. Tronco grosso, fartura de umas folhas maiores que a mão da gente, bem verdinhas. Elas são a única coisa bonita desse pedaço de terra, e aposto que a China Comunista não tem nada a ver com isso. Pensando agora, não é esse tipo de árvore que solta uma resina, Henrique, e que quando aquilo caía no para-brisa, ah, aquilo colava em tudo e era um inferno pra tirar e tal? Tenho quase certeza que sim. O que você dirigia mesmo, Henrique? Antes da pandemia. Não lembro. Era um Honda flex, não era? Não era. Não lembro.


Eu não lembro das coisas que aconteceram há quatro anos mas lembro do que aconteceu há vinte e três. Eu lembro daquele dia, no salão da primeira casa do teu pai. Eu já não conseguia deixar de me irritar com um choramingo infantil arrastado e expectorante invadindo a casa. E olha que a primeira casa do teu pai tinha uns vinte cômodos, no mínimo. Então, a ama de leite que dentre todas mais havia bebido cerveja preta no salão desabotoou a camisa e ofereceu o inchado seio ao menino que soluçava ao desinchá-lo a sugadas vorazes. Com extrema descrição, encarei-os, a ama e o amado. Henrique, você infante era uma ave de rapina extasiada enfiando o pescoço dentro de uma carcaça que ousava chamar de alimento, à cata de vísceras com a implacabilidade de seu bico. O seu choramingo, óbvio, havia cessado. Nada se ouvia além da sucção e do palavreado de conforto da ama de leite para você. Mas os meus ouvidos ainda zuniam daquela sua pirraça, Henrique. Como você era pirracento. Meu Deus. E como você mudou. Mas os ouvidos da tua mãe não, eles não zuniam, ela conversava protegida pelo vidro da porta de correr que vocês tinham na sacada, contemplando um empregado que conduzia ovinos pelo planalto da propriedade e murmurando com as outras madames o que seria o sacolejar das sinetas dos ovinos, caso existissem naqueles pescoços felpudos. Eu lembro do bafafá da tua mãe atrás daquelas sinetas. Alguma coisa sobre clonagem, sobre ovelha Dolly, sei lá. Teu pai, aéreo, passou trotando perto de mim e se trancou no primeiro banheiro que encontrou. Por mais que eu caminhasse pelo salão e limpasse a garganta, ainda ouvia os peidos dele lá dentro. Foi só nos arredores do bar que a situação ficou menos incômoda. Ou talvez tenha sido o teu pai que tenha parado de peidar. Enfim, eu me servi de uma cerveja, uma pilsen dourada com bastante espuma, por mais que eu preferisse as escuras. As escuras eu deixei pras suas amas de leite, Henrique, com a mesma solidariedade que eu olho para o seu cadáver estirado sobre aquela grama cozida de sol, um cadáver do qual até as formigas desviam talvez por elas saberem que é tudo uma fraude. Mas o que é uma fraude dentro de uma pandemia de mentira? Meu dever era trazer um pouco de coragem pra sua morte, Henrique. Encenar. Deixar um legado pro nosso pelotão. Eu sei que desde criança você acredita em reencarnação, Henrique. Então foda-se o que é de verdade e o que é de mentira. Eu já tinha mesmo o meu plano plenamente desenvolvido. Miro nessa mesma árvore e jogo a outra ponta da corda por cima do galho que eu julgo mais firme, mas não sem hesitar ou sem questionar sua resistência contra as minhas puxadas. Lógico que as aparências enganam. Quem nesse mundo diria que você ia morrer primeiro do que eu, Henrique?

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