O estranho aqui em casa

Todo aquele que almeja entrar para o mundo das responsabilidades, para o mundo adulto e de pessoa respeitável, precisa ter um molho de chaves. É um silogismo: quem tem um molho de chaves tem alguma responsabilidade na vida / eu tenho um molho de chaves / logo, eu tenho alguma responsabilidade na vida.

Mas pode ser um pouco mais enigmático: quem tem chaves precisa abrir e fechar coisas na vida / eu tenho chaves / logo, preciso abrir e fechar coisas na vida. Deslizamos aqui para as possibilidades da metáfora, os significantes “chaves”, “abrir”, “fechar” ganham outros terrenos de sentido. E aí não é só adulto responsável e de respeito que carrega essa missão.

É sair de casa e automaticamente tamborilar os bolsos: uma batida no dianteiro direito e o contorno do celular se desenha, uma batida (apalpadela autoerótica?) no traseiro direito e a carteira se faz sentir (canhotos seriam diferentes?). Uma batida no dianteiro esquerdo e as chaves despontam. O bolso traseiro esquerdo fica vazio à espera de objetos ocasionais, um tíquete de estacionamento, uma nota fiscal, papeizinhos quaisquer que vão aparecer só mais tarde esfarelados depois do banho na máquina de lavar.

Às vezes, no entanto, é possível sair de casa sem o celular ou a carteira, na promessa de sempre: desconectar-se do mundo, vento na cara em meio a um campo florido parecendo propaganda de celular ou cartão de crédito ou de qualquer coisa que queira vender felicidade. Falo de sair só com o corpo (ok, com as roupas também), sem as virtualidades do telefone, sem o cpf que pretensamente quer provar que sou uma pessoa física. Nem falo de sair sem dinheiro, esse hábito eu cultivo compulsoriamente. Mas sair sem as chaves é complicado, ainda mais morando sozinho a metade da semana (a outra metade com crianças pequenas que eu ainda não deixo por mais de cinco minutos). Então as chaves vão comigo para onde eu for, mesmo estragando a paisagem idílica com seu tilintar metálico.

Dia desses fui para a academia, sem celular, sem carteira. Só com as chaves. Fiz toda aquela série infernal, corri, suei, hamster na rodinha. Na volta, chegando em casa de bermuda e um moletom de bolsos largos, a apalpadela no bolso só abraçou tecido, mais nada. Perdi minhas chaves.

Como João e Maria, só que com sucesso, refiz todo o caminho, cheguei novamente à academia. Nada, nem no caminho, nem na academia. Voltei – revoltei – ainda no mesmo percurso, esperança de encontrar as migalhinhas do molho, olhando o buraco de ruas e calçadas – são tantos –, o matinho crescido das beiradas, o matão imenso dos terrenos baldios, nessa paisagem brasileira sem flores do campo. Das chaves, nada.

E eu preciso tanto de chaves. Até o Drummond pergunta ao leitor se, para encontrar o sentido das palavras escondido sob a face neutra das palavras aparentes, ele havia trazido as chaves. E eu tinha perdido as minhas.

Como habitante, preciso manter hábitos. Perder chaves retira nosso hábito, tira a nossa condição de habitante e nos coloca na de errante extravagante, que erra e vaga perdido em busca do objeto que nos coloque novamente nos trilhos do habitual, no espaço recortado da casa.

Delirei imaginando estranhos malvados achando o molho, testando a tag de madrugada, bem durante cochilo do porteiro, depois na entrada dos blocos, apartamento por apartamento. E quando eu finalmente conseguisse novas cópias e entrasse em casa, eles estariam lá, sentados, tomando chá, vendo o loro José.

Meu critério de responsabilidade, depois das chaves perdidas, foi para o espaço, eu sou um irresponsável arrancado do hábito e que perdeu a tranquilidade de ocupar um espaço de ar entremeado por paredes e janelas.

Você hospedaria um estranho na sua casa? Aí que me vem aquele filme antigo, Um dia de fúria, que, pelo pouco que lembro, traz a história de um cara para quem tudo está dando errado e ele então tem um ataque de ira e vira um monstro violento. E eu mudo a pergunta: você hospeda um estranho dentro de você? Essas perguntas deveriam ser para mim mesmo, mas a vergonha da resposta me faz jogá-la para fora. Por que a vergonha me vem? Algum estranho fala por mim? E fala com a voz da vergonha ou da resposta que eu daria? Não sou indivíduo coisa nenhuma, sou é bem dividido.

Freud veio para instaurar o que ficou conhecido como terceira ferida narcísica: Copérnico tirou a ilusão de que habitávamos o centro do universo; Darwin o delírio de éramos o fruto de um designer divino; Freud a fantasia de que a nossa consciência mantinhas as rédeas sobre o nosso desejo. “O eu não é mais senhor em sua própria casa”, que ele disse (já falei sobre isso, aqui). Quem é esse estranho que achou minhas chaves e ocupa meu espaço? A que espaço me refiro: ao da casa, ao da cabeça?

Lendo casos clínicos de psicanálise, conheci a história de um pai, bem formado, educado, polido e atencioso que, no entanto, batia no filho a partir de determinadas atitudes da criança. Esse pai ficava muito triste, e buscava tratamento. Que estranho o habitava? Que chaves ele havia perdido para que – em vez de fechar a porta aos estranhos – os estranhos entrassem e saíssem? É mesmo possível evitar o que nos é estrangeiro?

Um conjunto de portas se abriu e se fechou ao longo da nossa vida, escolhemos algumas, deixamos outras fechadas. A cada porta escolhida, inúmeras recusadas e perdidas. Mas sempre damos de cara com estranhos, que podem nos sorrir com um molho de chaves na mão e perguntar: “perdeu alguma coisa?”.

Não é fácil ser pessoa. Esse recorte de carnes e ossos que nos define biologicamente no espaço sempre esbarra no estranho, no alter, no hetero, no xénos para nos fazer quem somos. A ponto de carregarmos, dentro da nossa própria casa, um deles. Ou muitos.

É um dos saltos da biologia para a biografia, sobre o que falei aqui.

E todas as vezes – bem mais raras do que eu precisaria – que volto à academia, ainda o rabo de meus olhos procura as chaves, não para mim, pois já tenho outras, mas para que estranhos não me habitem. Dá-lhe, ilusão. Mas aquelas chaves nunca estão lá onde os olhos rabeiam. Perderam-se para sempre e eu não sei quem as encontrou.

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