Freud explica?

Aproveitando, e talvez abusando, de um termo caro à teoria da recepção – que vê o leitor como elemento fundamental para a clássica pergunta “o que esse texto quer dizer?” –, fiquei pensando como a expressão “comunidade interpretativa”, cunhada por Stanley Fish, pode ser revisitada nos dias de hoje. Regidos por valores e identificações em grande parte comuns, os indivíduos pertencentes a uma tal comunidade tecem interpretações que giram em torno de um raio limitado de possibilidades. Peguemos um clássico como Hamlet: a obra de Shakespeare continua a intrigar culturas para muito além de seu tempo original e de seu contexto inglês. Certamente nosso Hamlet é outro em relação ao dos séculos XVII, XVIII, XIX e XX e a comunidade interpretativa permite retirar sentidos outros – assim como colocar sentidos outros.

William Shakespeare.

A Igreja, por exemplo, moldou a sensibilidade humana ocidental e era muito difícil escapar dos domínios de um Pai supremo que a tudo via e podia e sabia, que regulava as relações com base no medo e na culpa. Já o Iluminismo organizou a enciclopédia da razão, entendendo que a humanidade só existia porque pensava (o cogito cartesiano) e depositou na racionalidade todas as saídas para o progresso, em nome do qual urgia “enforcar o último rei com as tripas do último padre” – frase de efeito dita por Jean Meslier (1664-1729), figura de fronteira que passou a vida como sacerdote e deixou de herança para seus fiéis um tratado defendendo o ateísmo.

A religião e o Iluminismo são apenas dois exemplos de discursos que organizavam a vida dos indivíduos, colocando-os sob a tutela de uma lógica dominante, e bem dominante. Assim, Hamlet certamente recebeu olhares diferentes conforme a comunidade interpretativa a que o indivíduo pertenceu.

Depois do século XIX, no entanto, começa aquilo que alguns filósofos (Lyotard, por exemplo) vão chamar de “fim das grandes narrativas”. Ou seja, há uma pulverização do pensamento geral – sobretudo depois das Grandes Guerras –, um esfacelamento das utopias e dos grandes discursos que buscavam uma visão totalizante do mundo, que perseguiam uma ideia última e definitiva para descrever e salvar a humanidade.


Exército alemão de Adolf Hitler invade a Polônia, ato que deu início à Segunda Guerra Mundial.

O século XX começa com uma obra desconcertante, A Interpretação dos Sonhos, de Sigmund Freud, a despeito do que possam pensar aqueles que não a leram e acham que vão encontrar ali um manual de símbolos do tipo “nossa, a pessoa sonhou com um cavalo, então deve jogar no bicho e carregar os outros nas costas”. Nossas feridas narcísicas ainda tentavam virar cicatriz depois de termos descoberto, com Copérnico, que o nosso planeta não era o centro do universo e que não éramos, a partir de Darwin, os seres prediletos de um deus à nossa imagem e semelhança, quando Freud vem para dizer que não somos senhores absolutos nem da própria casa, ou seja, que nossa consciência não dá conta de tudo a nosso respeito.

A Interpretação dos Sonhos, de Freud

Psicologia das Massas e Análise do Eu, de Freud

Um pouco mais adiante, em 1921, o mesmo Freud vai publicar Psicologia das Massas e Análise do Eu.

“Comunidade interpretativa”, “fim das grandes narrativas”, que diabos isso tem a ver com Freud? Para falar a verdade, eu não sei, mas faço aqui uma tentativa. Les non dupes errent, dizia Jacques Lacan: os não tolos erram. Vamos à errância:

Engana-se quem se fia no clichê “Freud explica”. A plique (do grego, dobra) está presente em palavra conhecidas como explicar, complicar, replicar. A ideia de que Freud explica seria dar a ele o poder de ser uma voz de autoridade que continuaria a colar rótulos nos indivíduos – à revelia do próprio indivíduo. Explicar seria desdobrar o sujeito e entregar ao próprio sujeito um outro eu, renovado, passado a limpo. Um dia da noiva no salão de beleza da psique, em que o sujeito não precisa fazer nada. Fazem por ele.

Acontece que Freud implica, ou seja, ele provoca o sujeito e o coloca como responsável por seus próprios des/dobramentos, saindo das universais “dicas para ser feliz” e fazendo o indivíduo implicar-se no desejo.

No Psicologia das Massas e Análise do Eu, Freud (sem pruridos místicos: não é uma graça eu estar escrevendo isso no dia em que ele comemoraria 163 anos?) vai propor uma organização coletiva que tem como modelo a hierarquia religiosa e militar. O que nos torna irmãos ou camaradas ou soldados? Traçando dois eixos, um vertical e outro horizontal, o senhor Sigmund coloca no topo do eixo vertical a figura do líder – um deus ou um comandante. Apenas porque olhamos para cima e seguimos a lei do líder supremo – o “Um” – é que nos irmanamos com os nossos iguais, que estão ao nosso lado em um eixo horizontal. Somos irmãos em Cristo porque olhamos para cima e vemos a figura de um deus pai que nos une; somos soldados e lutamos no mesmo lado porque olhamos para cima e enxergamos a figura do grande comandante. Deus ou o comandante tem a prerrogativa de nos dizer o que é errado e certo, de traçar estratégias para a nossa ação e dizer vão por aqui, vão por ali. Terceirizamos a conduta de nossa vida e colamos em nós rótulos externos que, aí sim, nos explicam.

A partir disso, achei possível costurar essa ideia àquelas outras, das grandes narrativas norteadoras (eixo vertical) que criavam comunidade interpretativas mais homogêneas (o eixo horizontal).

Com o fim das grandes narrativas, como ficamos? Olhamos para cima e vemos o lugar vazio – leis e líderes tão diversos ou fracos ou ausentes que não formam mais o Um. Sem a lei suprema a guiar rebanhos e tropas, o que resta de ovelhas e soldados? É dedo no c* e gritaria? Não à toa, a palavra pânico vem do deus Pan, que adorava uma zoeira e aparecia às pessoas de repente para assustá-las. Todas punham-se a correr desordenadamente, sem método, no melhor estilo cada um por si e nenhum deus por todos, salve-se quem puder.

Deus Pan adorava uma zoeira

Talvez esse seja um grande desafio da contemporaneidade: poder prescindir de uma lei suprema e moralizante sem cair na segregação dos pequenos grupos contra outros pequenos grupos, sem cair no “acabou a farinha, meu pirão primeiro”. As grandes figuras de autoridade se aposentaram (autoridade divina, militar, paterna, docente, presidencial). “Perder-se também é caminho”, dizia – de verdade – Clarice Lispector. Isso não significa, de minha parte, o saudosismo reivindicatório de uma autoridade que coloque fim na balbúrdia (palavrinha da moda), nem que o individualismo tome conta e retornemos à lei do tacape, o mundo é dos fortes e espertos etc. Talvez precisemos nos separar dos rótulos externos que nos alienam para ressignificá-los, retificando os significantes com que nos embalaram (nos dois sentidos), aceitando menos a explicação, temendo menos a nossa inconsistência e nos colocando como sujeitos implicados, responsáveis pela relação tão bem amarrada entre o que somos individualmente e o que somos coletivamente.

Em vez de buscarmos uma condução, podemos nos colocar em estado de sedução (seduzir é desviar daquilo que nos conduzia por um caminho único). Mas como fazer isso sem a responsabilização pelo próprio desejo, sem que o desejo não abra mão de uma ética, sem que vire mera busca narcísica a romper os laços com o coletivo, com o bem comum?

Isso é muito simples: basta que… basta que nada, quem seria eu para propor uma grande narrativa desdobrativa?

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