Quatro sentidos

O movimento era tão ritmado que lembrava um metrônomo. Em um zigue-zague compassado, a bengala de metal tocava a calçada de pedras portuguesas, ora à direita, ora à esquerda, produzindo um som contínuo, quase irritante: tac-tac-tac-tac. Mas era por meio deste contato táctil e repetitivo que Jesualdo passou a enxergar, depois que uma doença degenerativa agravada pelo diabetes escurecera suas vistas, dois anos atrás.

No princípio, revoltou-se diante das trevas. Aquele negrume perene o impedia de ver a poesia escondida nos mínimos detalhes do dia. Não havia o horizonte sangrando ao pôr-do-sol, nem as flores dos ipês que se derramavam em tapetes coloridos ou os batons vermelhos-vivos das senhoritas do passeio público.

Pouco a pouco, no entanto, os outros sentidos se aguçaram e pareciam compensar a falta da visão. Jesualdo percebia o mundo ao seu redor pelos sons, cheiros, sabores e pelo toque das mãos. Com o passar do tempo, tornou-se independente. Era capaz de fazer tudo sozinho: barbear-se impecavelmente, vestir-se com esmero e arrumar sua casa, com cada coisa em seu devido lugar.

Metódico, criou uma rotina, que cumpria religiosamente todos os dias. A escala incluía um passeio de uma hora pelo calçadão do centro da cidade, em que sua bengala zigue-zagueava, mostrando-lhe o caminho, que havia decorado qual tivesse um mapa gravado na memória. Foi num desses volteios ao cair da tarde que uma voz se lhe precipitou: “Posso te ajudar, moço?”

Em um primeiro arroubo, Jesualdo pensou em se ofender, mas a clareza com que aquela voz lhe soou tolheram seu ímpeto inicial. Como o rapaz se paralisara sem esboçar qualquer reação, a dona da voz insistiu: “Segure no meu braço direito. Eu te conduzo”.

A pele da mulher era morna e de uma maciez acalentadora. Com o anular, Jesualdo pode sentir que ela tinha uma pequena pinta, próximo ao cotovelo. De quando em quando, a pretexto de apoiar-se melhor, ele pousava a mão sobre o ombro de sua guia, para deslizar novamente até a dobra do braço.

Ela não lhe perguntou para onde ele queria ir. Também Jesualdo não mencionou qualquer destino. Apenas caminhavam sobre as pedras portuguesas do calçadão, enquanto ela lhe descrevia em uma voz quase musical as cenas daquela terça-feira: um menino magricela que engraxava os sapatos de um velho de boina, uma criança que corria atrás de pombos, duas adolescentes de piercings que andavam de mãos dadas, uma mulher que se apressava para tomar o ônibus…

Com esforço, Jesualdo desviou sua atenção para o som das passadas da moça e, pelo barulho, percebeu que ela usava sapatos de salto. Os passos eram firmes e decididos: devia ser alta. Certamente estaria vestida com discrição, mas com toques de elegância casual. Em variações de cinza, talvez. Ou quem sabe, um tailleur xadrez leve.

O perfume da mulher era suave, de uma fragrância que tinha leves tons adocicados. Talvez tivesse se banhado a menos de uma hora e passado leite de rosas pelo corpo. Quando passeavam perto de uma floreira, Jesualdo brincou, mentalmente, de separar os aromas – o dela e o dos jasmins – como se fossem, cada um, uma coisa concreta, dessas que se pode pegar com as mãos.

Assim que Jesualdo deu por si, estava em casa e se fundia sinestesicamente àquela mulher que lhe propiciava torrentes de sentimentos difusos, mas que se convergiam em uma única direção. Sentia cada milímetro, embora parecesse estar como perdido num deserto. Deleitava-se com os sussurros, cheiros, fluídos, pele. Tudo muito cru, nu, real. Em suas retinas opacas, compunha uma imagem para ela, mas, quando dava por si, ela já era outra. Ela era quem ele quisesse que ela fosse. Tinha a forma, a cor e o aspecto que ele bem entendesse. Naquela tarde, Jesualdo foi feliz. Por todos os sentidos.

 

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