Teatrólicos Anônimos

– Olá, pessoal. Meu nome é Andrei.

Todos da roda de cadeiras respondem com “Oi Andrei”. Diferentemente de outras sessões de grupo, aqui cada um fala o seu “Oi Andrei” com uma intenção diversa, buscando nuances, experimentando sons, tonificando o abdômen com diferentes técnicas. Cada um também senta em sua cadeira em posição levemente exclusiva, alguns claramente em poses pouco confortáveis, outros “ionizando” partes de sua musculatura crendo que a diferença é perceptível.

– Sou diretor de teatro e estou há três semanas sem ter outras atividades que não sejam relacionadas a teatro ou a pessoas do teatro.

A terapeuta, uma ex-atriz que largou a profissão há 14 anos (e que sempre fala sobre isso quando abre as sessões do grupo), olha com candura e diz:

– Você quer compartilhar com a gente o que aconteceu?

– Eu tenho… um pouco de vergonha.

– Andrei, você está em ambiente seguro. Aqui você pode falar.

– Não… Nem é por mim… Eu não quero causar mal estar no grupo.

Metade das pessoas, em suas cadeiras, fazem expressões dramáticas um tanto exageradas. A outra metade, composta por artistas que estão tentando fazer trabalhos no cinema, tem reações mais contidas.

– Este é um grupo que reúne pessoas que passam pelo mesmos problemas que você.

– Eu sei.

– E todas elas podem falar do que sofreram nesta roda. Sem restrições. Para que vocês saibam que não estão sozinhos.

– Eu sei.

– Sabe, quando eu fiz Hérmia em “Sonho de uma noite de Verão, eu…

Enquanto a terapeuta falava (mais uma vez) sobre a sua experiência shakespeariana, Andrei só pensava o quanto ele conseguiria se abrir para todos. A experiência tinha sido bem recente e ele ainda tinha os calos, as olheiras, o gosto do consumo de café em excesso amargando a sua boca.

– …mas, no final, o diretor me deixou mostrar a tatuagem na perna, sem maquiagem nenhuma. E então? Não é importante dividir os problemas?

– Claro, é sim.

– Então conta pra gente o que aconteceu. 

– Bom… 

Ele limpa o suor das mãos nas calças, enquanto toma coragem para dizer o que se passou. Cada um na roda olha com um tipo de intenção, sempre verificando se não é muito parecida com a intenção de quem está do seu lado.

– Eu não fiz nada, nas últimas semanas da minha vida, que não fosse teatro ou relacionado com pessoas de teatro porque eu… Estava estreando uma peça!

A melhor descrição do que aconteceu em seguida foi de um surto coletivo. O berro inelegível deu lugar a frases que ninguém sabia exatamente quem estava falando:

– Eu vou esquecer minhas falas!

– Pegou nota disso? Eu vou precisar pra prestação de contas.

– Cadê a minha fita crepe?

– SIM! A GENTE TEM QUE ENSAIAR NO DOMINGO!

– Não mexe no material de cena do outro!

– Cadê o foco? Onde fica o foco?

– Tem alguém na plateia?

– Desliga esse celular, agora!

Além das frases, barulhos de aquecimento vocal pipocavam de todos os lados – aparentemente, alguns artistas eram tão profissionais que aqueciam a voz antes de surtarem. Desviando das pessoas, Andrei foi chegando perto da terapeuta que estava acalmando uma figurinista que não parava de refazer a barra da calça de seus colegas.

– Mil desculpas. Eu realmente não queria…

– Imagina, imagina! Isso aqui é normal. Ruim mesmo foi quando estava nos ensaios de “Magra de Ruim II”, uma comédia que eu fazia, e o diretor deu um piti no ensaio que…

Enquanto ela falava do seu passado teatral, Andrei viu seus colegas e soube que todos voltariam ao normal. As estreias – tanto as teatrais, quanto qualquer outra em nossas vidas – passam, deixam suas marcas, aprendizados, e a vida segue na sequência. Sua vida voltaria ao normal. Quem sabe, ele até voltasse a escrever pro Plural.

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