Vitupério

É dia de jogo da seleção brasileira e a rua fervilha de trajes amarelos. A cor vívida salta aos olhos em meio ao cinza dos prédios e do asfalto do Centro. Faz sol. Meu campo de visão é amplo, e contempla uma quantia razoável de transeuntes. Uma alegre massa de pessoas se move em direção ao Largo da Ordem, em busca de um bar que abrigue suas angústias de torcedor.

Nós também seguimos alegremente pela calçada. Até que um vulto humano, captado pela minha visão periférica, faz soar o alarme na minha cabeça. Não sei se o gatilho foi a familiar corpulência, ou a forma característica como se move, impregnada no meu cérebro depois de tantos anos de convivência. Talvez ambos tenham ativado o aviso estridente que me fez frear por completo antes de atravessar a Barão do Serro Azul.

É como se um sistema totalmente autônomo funcionasse na minha cabeça – não importa o que eu faça, ele está ali, sempre rodando em segundo plano. Pressuponho que seja mais um dos muitos artifícios que desenvolvi ao longo dos anos, uma espécie de instinto natural de preservação. Uma forma de reconhecimento dos padrões de dor e alegria.

Detenho-me de chofre, e faço o mesmo com a frase que estava a sair dos meus lábios. Ao mesmo tempo, estico o braço direito em frente ao peito do meu interlocutor. Também desejo que ele pare. Emudeço – não quero que o som da minha voz faça com que aquele corpo, alguns metros na minha frente, vire para trás.

Mordo o lábio inferior e me pego, vulnerável como uma criança, desejando ter o poder de ficar invisível. Só quero que ele jamais se lembre da minha existência. Passaram-se milésimos de segundo entre o reconhecimento inicial e a formação do bolo de pânico que sinto borbulhando no meu estômago.  A acidez sobe vagarosamente até a garganta.

Engulo-a a seco enquanto os passos são tomados de cautela, e o rosto – lívido – se contrai em angústia. Não são lembranças específicas, mas sensações que retornam como ondas. O calor se esvai pelas pontas dos meus dedos.

Interrompida, minha companhia indaga com os olhos o que se passa. Olha à frente, mas não é capaz de ver. Permanece em silêncio. Como explicar uma súplica tão simples e íntima?

Seguro a respiração quando aquele corpo, antes tão familiar, para a poucos passos do meu. Não se vire. Me pego dirigindo súplicas a uma entidade maior, pedindo que algum deus ex machina intervenha. Mas a tragédia anunciada é inevitável e, com um simples giro de calcanhar, o estrago está feito.

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