Os “chefs” são um delírio que vai acabar

Sobreviverão os cozinheiros. Vamos embora nós, os que assinam cardápios, fachadas e contas no Instagram. Seremos inúteis e muitos de nós até cafonas, como barbas compridas, os mullets de 2050

Vocês tiveram um bar na sala de vocês? Aos leitores mais novos, essa pergunta deve fazer tanto sentido quanto internet discada. Mas você, leitor de 30 ou 40, sabe exatamente do que estou falando, não sabe? Aos que já pegaram a Xuxa nos programas de sábado, explico: nos anos noventa, houve um delírio coletivo que constitui-se em se colocar uma bancada, banquetas e um armário embutido, adornado com luzes, cristaleira e sei lá mais o quê, para fazer as vezes de bar, no meio das salas de estar brasileiras. Isso mesmo, os pais de outrora, serviam seu uiscão ali, para as visitas, fazendo cosplay de hotel de luxo ou sei lá que diabo. Graças ao bom deus dos decoradores, o delírio desapareceu, junto com as quinquilharias que os fatalmente inúteis bares acabavam acumulando. Amém!

Outro delírio coletivo que está com os dias contados e que em breve vai ter tanta utilidade quanto um bar no meio da sala é o Chef de Cozinha. Não, não, senhores, eu não fiquei maluco. Estou falando de mim e lhes digo: o Chef, como o concebemos hoje em dia, é de fato um delírio coletivo dos últimos vinte anos e vai nos parecer tão inadequado quanto mullets e ombreiras em um futuro bem próximo. Cozinheiros não, esses sobreviverão. Vamos embora nós, os que assinam cardápios, fachadas e contas no instagram. Seremos inúteis e muitos de nós até cafonas, como barbas compridas, os mullets de 2050.

Já ouvi um colega – de nobreza duvidável – dizer: “é difícil saber tudo, Chefs se especializam, é como a medicina”. Eis a profissão que um, por saber fazer ovo poché, é levado a crer-se tão qualificado quanto outro que opera um transplante de rim. Já os cozinheiros, esses nobres, têm egos normais, por isso ficarão e nós iremos desaparecer. Ao contrário de Dr. Poché, eles sabem que cozinhar não é uma profissão de alta qualificação. Organização, asseio, comunicação e outras qualidades que nada tem a ver com pilotar panelas, mais alguma noção da técnica é suficiente para fazer um ótimo cozinheiro, e eles sabem disso.

A nouvelle cuisine dos anos 70 nos pariu o Grito de Munch. O escândalo, a arte, o expressionismo – vulgar – de um aspargo equilibrado em cima de alguma coisa, com muita cor, texturas e volumes. Artistas por fim! Extravagantes, fizemos carreira, acumulamos estrelas e prêmios. Lá se foram 30 anos de aperfeiçoamentos, fazendo uma cozinha mais e mais exigente e cara, muito cara. De consumir e executar. State of the art, dizem. Acreditamos em reinvenções e quebras de paradigmas infinitos para sabores, texturas, formas e harmonias. Somos como os economistas que julgam o crescimento da economia infindável mesmo em um planeta finito. Afinal, somos frutos dos mesmos excessos econômicos.

Houveram vários trends intra delirantes pelo caminho. A “gastronomia molecular”, por exemplo. Deveria ter morrido em 2011, junto com o fechamento do El Bulli, do imbrochável Ferran Adrià. O premiado restaurante, no entanto, na mesma medida em que acumulava prêmios, acumulava dívidas e seus clientes que gastavam quantias exorbitantes que partiam de volumosos três dígitos (em euros) para comer as esferas, as espumas, as fumaças, as telhas e todo o resto da feira de ciência, não foram suficientes para segurar o melhor restaurante do mundo, da época, de portas abertas.

Depois deste marco inicial, arrisco dizer que, nos últimos dez anos, as redes sociais catalisaram nosso fim. A nouvelle cuisine fez-se parecer coisa comum, amplificando seu absurdo: é como se a versão vulgar do Expressionismo se chocasse de frente com a prostituição da Pop Art. Nos tornamos escala imagética global, imprescindíveis em qualquer mesa, ainda que excessivamente caros, ilusoriamente acessíveis. O prato emoldurado virou obra de arte, presente em todos os feeds de todas as pessoas do mundo inteiro. Warhol branda do túmulo: “I won”! Talvez de tão expostos nosso gênio não pareça mais tão genial assim. Outra frase que Andy poderia nos ter dito.

A Casa do Porco abriu uma portinha para vender sanduíches, Roberta Sudbrack, um foodtruck, e até o imbrochável dos imbrocháveis, enfim, tornou-se impotente. René Redzepi e seu, hors con hours, NOMA, o mais prestigiado de todos os restaurantes, enfim, anunciou o seu jogar a toalha. Fechará no ano que vem, por reconhecer que se trata de uma operação insustentável. “Não dá mais”, disse o Chef em dinarmarquês, ao menos eu imagino que tenha dito. No entanto, ao contrário dos seus colegas brasileiros, virou coach ao invés de cozinheiro, seguindo os passos de seu eterno mestre, Ferran Adriá. Espertos esses gringos, não?

Num círculo vicioso de auto engrandecimento e valorização, chegamos aos cúmulos dos cúmulos das especificidades inúteis e mesmo o capitalismo, que suporta várias extravagâncias, não consegue lidar conosco mais. Os espertos dentre nós, estão lentamente voltando a ser cozinheiros. A extravagância já não faz mais sentido, para poucos deslumbrados talvez, mas a verdade é que nunca fez. É hora de dar tchau. Devemos isso ao mundo, uma saída elegante mas resoluta. O fim dos teimosos que ficarem para trás, no entanto, será triste. Vão acumular poeira, caixas, garrafas vencidas, luzes queimadas, até a completa extinção na próxima decoração da sala, para dar lugar ao seguinte e absolutamente efêmero delírio coletivo.

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