Quem paga a conta? Faz alguns anos que o arrocho de margens para quem faz gastronomia tem se intensificado. É só ouvir sobre uma taxa a mais, que pelos se arrepiam até onde não bate o sol, no empreendedor médio. De um lado, tendências provavelmente irreversíveis: reciclagem, reuso, destinação adequada. Do outro: taxas municipais, custos de produtos, custos de mão de obra e tempo. E no meio, uma montanha cada vez maior de lixo! Com a chegada da pandemia, e o delivery virando a norma, outra crise se instalou: a das embalagens e da poluição que veio com elas. Mergulhados neste mar de polímeros sem arte nem Vik Muniz, estamos nós, a sociedade, falando em sustentabilidade há mais de trinta anos, mas pouco fazendo a respeito.
Há quem odeie fazer delivery e tenha tido que parir a operação no seu restaurante a fórceps. E pudera, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. O design do serviço clássico aposta no tête-à-tête e na experiência, ao passo que o delivery trabalha com uma projeção muito mais subjetiva. É a tentativa de passar uma experiência semelhante por meio de signos e da qualidade percebida à distância. Não há meio termo entre os dois tipos de serviços e a pandemia deixou isso bastante escancarado. Dos botequins com seus acepipes, aos famosos italianos, restaurante algum pode ficar de fora da adaptação necessária a nossos tempos. Entre a compra de caixinhas de isopor, talheres, copos, sachês e embalagens no geral – que diga-se de passagem, explodiram em valor – todos sentiram seus efeitos, principalmente o meio ambiente.
O Brasil suja muito e recicla pouco. As nossas taxas de reciclagem de plástico beiram o ridículo, inclusive se comparadas a outros materiais mesmo em solo nacional. De acordo com o relatório da fundação alemã Heinrich Böll, Atlas do Plástico, o Brasil só recicla 1,28% das 11 milhões de toneladas de plástico produzidas internamente, ao passo que o alumínio de nossas latinhas encontra a reciclagem em 97,6% de seu volume fabricado. O que é muito preocupante quando se tem um aumento de 25% a 30% na coleta de materiais recicláveis durante a pandemia, segundo a ABRELPE, Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais. Ou seja, o problema causado pela pandemia é extraordinário e novamente sem direito a Oscar.
Outro rotundo fracasso que demora tanto quanto a Linha Verde em Curitiba para se estabelecer concretamente é a Política Nacional de Resíduos Sólidos, estipulada por lei em 2010. Entre outros objetivos, o dispositivo procura o controle de resíduos poluentes de diversas indústrias, estipula que os municípios possuam planos municipais de resíduos sólidos, a eliminação dos lixões, a criação de sistemas de coleta seletiva e de políticas de logística reversa – prática que incumbe os fabricantes e usuários de certos produtos a recolhê-los ao final de suas vidas úteis e dar-lhes destinação adequada.
Ainda que certos setores tenham se adaptado com mais sucesso, a exemplo do setor automobilístico, outros, como o da gastronomia, sequer começaram a tatear a superfície. Mesmo que se concorde sobre a capacidade degenerativo-ambiental dos materiais dos carros, o volume de lixo causado por operações relacionadas à alimentação é incomparavelmente maior, especialmente durante o boom do delivery.
Há três axiomas identificáveis que ofuscam a capacidade social e individual de endereçamento do problema. O primeiro deles é a nossa falta de educação ambiental basal. Precisaríamos entender os materiais que utilizamos, alguns já há mais de 50 anos, para poder diferenciá-los e dar-lhes tratamento necessário. Não se sabe diferenciar tipos diferentes de plásticos, isopores ou mesmo papel. O segundo axioma é a nossa noção equivocada de que se possa de fato jogar algo “fora” quando este “fora” não existe. Algum resíduo que saia da visão pela nossa lixeira e é levado pela companhia sanitária pública, em realidade, muitas vezes sequer está a mais de 20 quilômetros de nossas residências, depositado de forma equivocada em algum outro lugar. E por último, nosso passado escravista, que merece ser discutido até com um parágrafo próprio.
“Tigrada”, gíria nefasta e racista usada por incautos, pessoas mal intencionadas – ou ministros do governo Bolsonaro – até hoje se referia aos negros escravizados que, ao retirar os jarros contendo excremento humano de seus senhores ficavam rajados pelo escorrer dos dejetos, logo fazendo-os parecerem tigres. Apesar do processo civilizatório ante hábitos grotescos e higiene inexistente, o raciocínio continua o mesmo: “o meu lixo é problema de outra pessoa”. Infelizmente, para todos, o contingente de pessoas mal pagas, em situação de escravidão contemporânea, continua nos amarrando a esses grilhões de outrora na medida em que, como senhores da casa grande, continuamos a nos portar como aqueles que não limpam seu próprio pinico. Em qualquer país civilizado, os próprios habitantes de um lar fazem não só a triagem, como a diminuição e a destinação dos resíduos produzidos naquele ambiente. Isso sem falar nas fiscalizações e multas por má conduta relacionada ao descarte correto do lixo. Bem diferente de nós, o lixo de cada um é responsabilidade entendida como sua.
Mas e os restaurantes nessa? Alguns donos de restaurantes, guiados por seu compasso moral interno e determinação de atleta olímpico brasileiro, se lançam sozinhos na empreitada de diminuir sua marca negativa sobre o meio ambiente, absorvendo custos e atividades extras a uma já bastante atribulada vida. Os outros, em situação completamente compreensível, provavelmente até gostariam de mudar, mas não dão conta em fazê-lo, pois vivem em um ambiente indisponível de alternativas simples e baratas para a resolução do problema, resultando em uma atitude reativa com relação a imposição de mais uma taxa ou norma sem contrapartidas. Sustentabilidade no Brasil, ao invés de ser entendida como necessária, é luxo para quem pode ou tem muita determinação.
Dito isso, na falta de redes melhor formadas, sinergia entre grandes geradores de lixo e atores da reciclagem, os custos não podem ser rateados e o processo colapsa em sua ineficiência, nos deixando muito longe dos ideais gringos a que almejamos em nossos salões, mas não cumprimos nas saídas de nossas cozinhas. Ao mesmo tempo, o achatamento do poder de compra dos nossos grandes clientes, a classe média, amarra mãos e pernas numa inércia de preços sem precedentes já que custos extras não serão absorvidos pela demanda. O fim não está nem um pouco próximo para nosso problema do lixo, infelizmente. Portanto, voltando à pergunta inaugural do texto: quem paga o preço? Lhes respondo: por enquanto, todos nós, queridos amigos e amigas, todos nós e as próximas gerações!
Sobre o/a autor/a
Felipe Petri
Engenheiro, cozinheiro, empresário, defende o consumo consciente, adora cerveja e música alta.