O racismo à brasileira

No Julho das Pretas, uma reflexão sobre comportamentos que reforçam as desigualdades em um país que insiste em não permitir que uma ideia de convivência em pé de igualdade venha à tona

Já me vi desacostumada com alguns mecanismos de mascarar o racismo que, ao meu ver, só existem no Brasil. Estudando sobre, mais tarde, pude compreendê-los melhor. Entendi que existe um “racismo à brasileira”, como diz o sociólogo Antônio Sérgio Alfredo Guimarães, também professor na Universidade de São Paulo.

Depois de um intercâmbio em Bruxelas, na Bélgica, retornei ao Brasil para ser professora. Cheguei à escola em que iria trabalhar muito feliz por poder exercer minha formação. Cheguei tão “brasileira”. Afinal, ter morado fora havia me feito compreender a minha identidade de brasileira de formas distintas e mais profundas.

Abri os livros didáticos de História e minha felicidade foi maior ainda, os conteúdos de história da cultura afro-brasileira e africana estavam todos lá, segundo nossa tão estimada Lei 10.639/03, a qual estabeleceu novas diretrizes e bases da educação nacional, incluindo no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “história e cultura afro-brasileira”. Estava ali a valorização das diferentes contribuições na construção da sociedade brasileira. Nos novos livros tinham também a história das mulheres e de minorias. Foi empolgante!

No meu primeiro dia, ao ser apresentada aos meus colegas de trabalho, nunca vi caras tão surpresas em minha vida. Não entendi tanta surpresa de imediato. Alguns deixavam seus queixos caírem até o pé. Eu ri comigo mesma. Perguntavam se eu era brasileira – pergunta que me fazem até hoje toda vez que entro em uma escola nova. E isso porque não sou médica nem tenho uma grande carreira executiva. Sou apenas uma professora negra e brasileira, de Curitiba.

Agora sei que estes comportamentos explicitam nosso lugar social neste país que, num movimento inexplicável, nos acolhe e nos rejeita, conforme a situação, hora e lugar. Há uma engenharia social que demarca os espaços onde devemos estar, mas que também é muito consciente de nosso papel aqui, e sabe se orgulhar da contribuição afro-brasileira, sem permitir que uma ideia de convivência em pé de igualdade venha à tona.

Por isso, vejo pessoas – brasileiras – agindo e se comportando sempre na manutenção da desigualdade, e quando percebem que algo está fora do lugar, agem logo, com atitudes e elogios. “De onde você é?” “Você não parece brasileira.” “Você é diferente dos negros daqui.”

Uma das estratégias para manutenção do abismo social entre negros e brancos é o racismo institucional. Para a estrutura estatal foi conferida o estatuto de agente coibidor da promoção socioeconômica do negro no país. Conforme aborda a socióloga Gevanilda Santos, ao longo de décadas, o tratamento desigual dado à população negra é evidenciado “nas instituições do mercado de trabalho, da saúde, da educação, da segurança pública e até nas atividades de lazer”.

Tive e tenho que conviver com comportamentos racistas naturalizados todos os dias. Algumas pessoas se movimentam no sentido de me deixar à vontade, mas não conseguem. Me olham, falam de mim, me elogiam o tempo todo, dizem que deveria trabalhar com outra coisa melhor, ser modelo, estilista, artista… Mas nunca uma carreira exclusiva das elites. Dizem que amam minha cor, minhas tranças, pedem para tocar meu cabelo, querem que me sinta bem, mas é difícil.

Alguns elogios simplesmente não são elogios. São a manutenção da desigualdade. Uma reação que nos constrange de uma maneira que, se não nos atentamos bem, nos sentimos elogiadas. E aqueles e aquelas que naturalizam o racismo se sentem aliviados e permanecem na perpetuação do racismo à brasileira.

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