Morte: substantivo masculino plural

Quando vejo o rosto de Marielle brutalizado fico pensando no quanto uma mulher negra, eleita, ativa contra milícias e outras formas de supremacia bélica branca deve incomodar um poder que precisa se mostrar constantemente insensível

Fizemos, em parceria com o artista visual Café e com o Instituto Aurora, uma intervenção no muro do Colégio Tiradentes, com a ajuda de adolescentes que estudavam naquele colégio, como parte de uma ação de conscientização e transformação das representações sobre mulheres que lutam por direitos humanos. Direitos humanos não são “privilégios” de alguns grupos: são condições básicas de existência para qualquer pessoa. O fato de algumas pessoas conseguirem encarar isso com ódio expressa duas coisas simultâneas.

Por um lado, o efeito de uma retórica do ódio que tem ganhado muita força desde a eleição de uma figura viril e autoritária para a Presidência e, por outro, o próprio objeto de nossa intervenção, o desconhecimento da história e memória dessas mulheres.

Quando vejo o rosto de Marielle brutalizado fico pensando no quanto uma mulher negra, eleita, ativa contra milícias e outras formas de supremacia bélica branca deve incomodar um poder que precisa se mostrar constantemente insensível e agressivo ao sofrimento causado por suas ações.

Pintaram primeiro sua boca, seus olhos e desenharam uma cruz em sua testa com tinta prateada. Um desejo de ver morrer de novo e de novo a boca que não se cala. Somos sementes, não adianta sequer nos enterrar. Quando Anastácia foi retratada com uma máscara em sua boca (Grada Kilomba fala bem desse episódio em seu livro Memórias da Plantação) retratou-se também toda a ideologia de silenciamento e negação à sobrevivência que se reflete até hoje na ausência de garantia de direitos básicos à população negra. Em tempos de protestos contra o racismo, tapar a boca de uma mulher escancara a fragilidade psíquica de quem sequer suporta ser exposto às denúncias de violência do cotidiano.

Mas a problemática não para por aí. Tempos depois, desenham um pênis, uma seta em direção ao seu rosto com a palavra lixo, e um símbolo masculino em cima de seu rosto. O que isso me diz enquanto psicanalista e pesquisador de masculinidades? Que a ideia de masculinidade enquanto aquilo que violentamente se opõe à diversidade (aquele que controla a si, aos seus “inferiores”, que performa pela agressão) é uma ideia colonial, branca, aliada ao que há de mais mortífero no planeta. Colonialismo, fascismo, feminogenocídio: a morte constante do outro como maneira de afirmar a própria vida.

Senti tristeza e ódio ao ver isso, mas também senti que o público incomodado se revela nesse gesto: gente frágil, medrosa, covarde, miliciana de fato ou de espírito, que encontra no ato covarde a expressão mais bem feita de sua ausência de capacidade para o convívio democrático. E isso é uma escolha, não há nada de psicopatológico ou extraordinário nesse tipo de ato tão cotidiano.

Em meu coração e no coração de muita gente, Marielle está e continuará presente. Repintaremos e multiplicaremos os muros, para que eles sejam portas abertas para as tantas prisões e manicômios, cárceres privados de violência doméstica e familiar, ônibus lotados de pessoas maltratadas nas quais insistem em trancar a liberdade. Enquanto uns insistirem em apagar a luz, nós traremos aurora.

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