A linha de frente do combate à Covid-19 é feminina

Perspectivas de gênero são fundamentais para soluções sistêmicas da pandemia, em um cenário em que mais da metade das equipes de saúde do mundo são representadas por mulheres

Elas! Elas estão nos hospitais, nas funções de médicas, enfermeiras, nutricionistas. Elas estão nas casas de abrigo de idosos, nas funções de terapeutas ocupacionais, psicólogas. Elas estão nas casas de abrigo de crianças, na função de educadora social ou mãe social, como é comum se falar. Elas estão cuidando – do mais novo ao mais velho da família – na função de mãe, esposa, filha. Elas estão na linha de frente das funções associadas ao cuidado em todas as esferas da sociedade, no âmbito institucional e no âmbito privado.

Por isso, intituições internacionais, como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização das Nações Unidas (ONU), têm apontado para a necessidade de se propor soluções de contenção e eliminação da pandemia de Covid-19 a partir de uma perspectiva de gênero.

E por que essa perspectiva de gênero?

Para responder a essa pergunta, recorro a uma história pessoal que ilustra a importância desse olhar segmentado para a busca de uma solução com impactos sistêmicos.

Em Maringá, no norte do estado do Paraná, moram a minha tia e a minha vó. A minha tia, de 60 anos, integra uma equipe de enfermagem. Desde o início da pandemia no Brasil, ela não parou de trabalhar, apesar da idade. Afinal, ela faz parte da chamada linha de frente. A minha vó, com mais de 80 anos – confesso que não lembro exatamente a sua idade – está muito debilitada há algum tempo. Com uma série de fragilidades provocadas por doenças e a própria idade, ela é completamente dependente da minha tia, com quem ela mora.

Neste momento, apresento uma terceira pessoa nessa história: a cuidadora da minha vó. Também uma senhora. A cuidadora, mulher, apesar de muito dedicada ao trabalho, entendeu que não poderia mais permanecer na sua função de cuidadora, uma vez que a minha tia continua trabalhando e isso aumenta os riscos de contaminação de todas as pessoas que convivem em sua casa.

Sem conseguir afastamento do trabalho, a minha tia permanece na linha de frente. A minha vó, por sua vez, permanece precisando de cuidados. Mas, agora, sem cuidadora.

Então, aparece uma quarta pessoa nessa história. Você não se surpreenderá com o fato de ela ser… mulher. Uma vizinha, igualmente de idade mais avançada, é quem tem se solidarizado para fazer o papel de cuidadora da minha vó. Ela tem as qualificações necessárias? Talvez não! Mas ela está disposta. Ela, como muitas outras mulheres, está disposta a correr riscos pela garantia da vida.

O que os dados nos dizem?

A OMS afirma que as mulheres correspondem a 90% das equipes de enfermagem do mundo. Essas equipes, por sua vez, representam mais da metade de todo o sistema de saúde global. E são elas, as enfermeiras, que estão no dia a dia do combate à pandemia. Como afirma o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, em uma matéria publicada pela própria organização, as profissionais de enfermagem “são a coluna vertebral de qualquer sistema de saúde”. Vale ressaltar que me refiro às profissionais de enfermagem no feminino de forma intencional, uma vez que representam quase que a totalidade desse grupo de profissionais.

No Brasil e no Paraná esse cenário não é diferente. De acordo com o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), há 105.785 profissionais de enfermagem (entre auxiliares, técnicas e enfermeiras) cadastradas no Conselho Regional de Enfermagem do Paraná, no ano de 2020. A pesquisa Perfil da Enfermagem, realizada em 2013 pelo Cofen e FioCruz, aponta que, na época, das profissionais cadastradas no estado, 87% eram mulheres. Apesar de não haver uma pesquisa atual que mensure essa proporção no estado, a tendência nacional e mundial aponta para a permanência das mulheres no exercício dessa profissão.

Até o dia 9 de abril de 2020, o Cofen confirmou 19 mortes de profissionais de enfermagem nesta primeira fase da pandemia no Brasil. Sendo 12 mortes de mulheres. Em ofício enviado à Câmara dos Deputados, o Cofen afirma que dos profissionais afastados com suspeita de Covid-19, 83% são mulheres.

Além disso, vale se ater ao fato de que as equipes médicas no Brasil também passaram por um processo de feminização. Desde a década de 1970, o número de médicas cadastradas no Conselho Federal de Medicina (CFM) vem aumentando gradativamente. Elas representam, atualmente, 45,6% do total de profissionais de medicina cadastrados no CFM, segundo dados do Relatório Demografia Médica no Brasil (2018). Na última década, elas já representam a maioria entre novos profissionais cadastrados. No estado do Paraná, de cada 10 médicos registrados, 4 são mulheres. Essa é a realidade de 15 estados brasileiros, demonstrando que o processo de feminização da profissão tem sido nacional e o Paraná não está de fora disso.

Com progressos a partir do movimento feminista, meninas têm estudado mais e se permitido sonhar com profissões antes ditas de homens. O aumento da presença das mulheres na Medicina muda o paradigma do “homem médico” e da “mulher enfermeira” – exclusivamente. Ao mesmo tempo, implica o desafio de pensar soluções para uma pandemia como a que estamos vivendo por outras perspectivas – femininas e feministas.

Complementar a esse cenário, a ONU-Mulheres, em uma carta de apontamentos sobre a questão de gênero na pandemia e proposições de solução, reforça que com a saturação dos sistemas de saúde e as escolas fechadas, recai sobre a mulher os cuidados da família. “As tarefas de cuidado recaem principalmente sobre as mulheres, que, em geral, têm a responsabilidade de cuidar de familiares doentes, pessoas idosas e crianças.”

Essa é uma narrativa de séculos, que a historiadora Michelle Perrot nos apresenta muito bem. Pensando a partir da Revolução Industrial, a autora nos diz que a esfera pública não era entendida como o espaço para uma mulher de respeito. A rua era o lugar das mulheres “baderneiras”. Já a esfera privada, longe de olhos alheios, cabia bem para a mulher e, portanto, tudo o que nela acontecia e acontece. Preparar as refeições, lavar e passar as roupas, dar banho nas crianças – por vezes nos idosos. Basicamente, cuidar do bem-estar e da garantia de vida saudável de todos os membros da família. Seríamos naturalmente predispostas ao cuidado pelo fato de que podemos gerar vida? Ou seria o cuidado uma habilidade que desenvolvemos em um espaço (a casa) e um contexto histórico (machista) em que “cuidar” se fazia e faz imprescindível? E por que outros membros da família também não podem aprender a cuidar? Só para deixar explícito caso tenha ficado dúvidas, nós – mulheres – não nascemos sabendo cuidar. Isso é desenvolvido. E, se é desenvolvido, pode ser por homens também.

Soluções a partir de questões de gênero

Cito aqui quatro possíveis soluções apontadas pela ONU-Mulheres para entendermos a dimensão da perspectiva de gênero:

  1. Melhorar o acesso das profissionais de saúde a informações, equipamentos de proteção individual e produtos de higiene;
  2. Promover modalidades flexíveis de trabalho para essas mulheres da linha de frente diminuindo o risco de contágio e transmissão para familiares;
  3. Promover estratégias específicas para o empoderamento e recuperação econômica das mulheres, considerando programas de transferência de renda. Vale destacar que a renda básica emergencial já está em vigor. As mulheres que podem ser beneficiárias e são chefes de família têm direito ao dobro do valor do auxílio. Ou seja, elas têm direito a R$ 1.200,00;
  4. Redistribuir a sobrecarga de trabalho não remunerado que ocorre nas residências com cuidados de saúde e atendimento crianças, idosos, pessoas com alguma doença ou pessoas com deficiência.

Essa última solução proposta está ao nosso alcance. Talvez não tenhamos o poder para promover melhores condições de trabalho para as profissionais da saúde ou não tenhamos a possibilidade de contribuir financeiramente com mulheres e famílias menos favorecidas, mas temos a possibilidade de começar uma mudança em nossas casas, aliviando para as mulheres da família a sobrecarga do ato de cuidar.

Acredito que novos comportamentos, hábitos e culturas familiares surgirão nesse tempo de quarentena e eles podem ser duradouros. Façamos uma autoanálise e comecemos a mudança.

Sobre o/a autor/a

Compartilhe:

Leia também

Melhor jornal de Curitiba

Assine e apoie

Assinantes recebem nossa newsletter exclusiva

Rolar para cima