Em maio de 2021, o presidente francês Emmanuel Macron finalmente admitiu “as responsabilidades” do país no genocídio de 1994 em Ruanda, quando o regime extremista da etnia hutu matou mais de 800 mil pessoas, quase em sua totalidade da minoria tutsi. Poucos dias depois, já nesse mês de junho, a Alemanha também reconheceu como genocídio os crimes cometidos pelas autoridades coloniais no início do século XX, na então colônia do Sudoeste Africano Alemão, contra os herero e nama, após mais de uma década do primeiro pedido de desculpas oficiais.
Seria este um flagrante contraste na forma como se desenrolaram as tratativas de reparações, se compararmos ao Holocausto, outro genocídio reconhecido pelo Estado alemão?
Em primeiro lugar, torna-se necessário elucidar tanto o conceito original de genocídio quanto a trajetória que levou ao pagamento de indenizações bilionárias às vítimas judias do regime nazista. O termo genocídio foi cunhado por Raphael Lemkin, jurista polonês-judeu nascido em 1900, em uma pequena fazenda perto da cidade polonesa de Wolkowysk, atual Belarus. Em sua concepção, o termo foi entendido como a “destruição de uma nação ou de um grupo étnico; de um modo geral, genocídio não significa necessariamente a destruição imediata de uma nação”. Pode-se entender que, para Lemkin, o genocídio busca a destruição da estrutura econômica nacional, de suas instituições religiosas, de sua fibra moral, de seu sistema educacional, contando eventualmente com assassinatos em massa, seletivos de partes das populações-alvo.
Notoriamente, o que urgiu a necessidade da adoção de uma definição oficial para as Nações Unidas, como sabemos, foi o evento histórico do Holocausto, que resultou na Convenção do Genocídio, em 1948. Nessa ocasião, genocídio foi definido como “qualquer um dos seguintes atos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, uma nação, grupos étnicos ou religiosos”.
Apenas alguns anos após o Holocausto, fundada na década de 1950 por representantes de 23 importantes organizações judaicas internacionais, a Jewish Claims Conference iniciou a negociação, distribuição de fundos e indenizações para indivíduos e organizações vitimados pelo genocídio do povo judeu. E, ainda hoje, continua a ser uma das maiores representantes dos sobreviventes que buscam a reparação histórica – e que, nos últimos anos, levou o Estado alemão a ampliar o número de vítimas que recebem algum nível de indenização. Além da Alemanha, a União dos Bancos Suíços reconheceu ter comprado do regime nazista alemão, durante a Segunda Guerra Mundial, ouro pilhado de pessoas detidas em campos de concentração. Admitiram também ter se apropriado de recursos depositados por judeus em contas bancárias antes da guerra, e dessa maneira, por meio da Conferência, também foi estipulada uma indenização monetária.
Ainda hoje, indivíduos e famílias são compensados pelo crime de genocídio do povo judeu, em um valor total de mais de 80 bilhões de dólares pagos desde a década de 1950. No caso recente, anunciou-se que estava firmado um acordo, após cinco anos de negociações entre a Namíbia e a Alemanha, um processo que definiu uma “compensação” de 1,1 bilhão de euros, que deve ser pago pelos alemães ao longo de 30 anos.
Três diferenças saltam aos olhos. A primeira, o fato de que as negociações com a Namíbia resultaram no que se chamou de “ajuda ao desenvolvimento e à reconstrução”, cautelosamente evitando o uso de termos como “indenização” e “reparação”. A Alemanha rejeitou os pedidos de reparação, sublinhando que a quantia seria paga numa “base voluntária”. A segunda, a denúncia de representantes dos povos que sofreram com essa instância de brutalidade colonialista, de que sequer foram convidados para as negociações. A terceira, o valor, considerado humilhante por lideranças locais, que também expressaram dúvidas quanto à capacidade do governo da Namíbia de revertê-lo em algo palpável para os descendentes daqueles que mais sofreram sob o regime colonial.
Mesmo com as discrepâncias, quando o acordo entre Alemanha e Namíbia foi firmado e noticiado internacionalmente, sua recepção foi provavelmente mais positiva do que seria sensato. Nesse clima, muitos se tornaram esperançosos de que uma “Primavera das Reparações” estaria por vir, com um poder de inspiração e de mobilização tal qual a “Primavera Árabe”: uma fileira de países puxada pela Alemanha e pela França, com a intenção de redimir os erros do passado, ajudando a construir um futuro mais digno a cidadãos de dezenas de países que sofreram sob o colonialismo Europeu. Infelizmente, examinando um pouco além de onde passa o andor, pode-se enxergar que o caminho ainda é longo e vem sendo percorrido a passos vagarosos. Afinal, como pode-se falar de reparação em larga escala quando artefatos saqueados de todos os tipos ainda jazem a milhares de quilômetros de distância, enclausurados em museus de outro continente? Quando existem crimes coloniais centenários que jamais foram publicamente adereçados pelos seus perpetradores?
Ainda assim, as questões relativas ao colonialismo e ao expansionismo deixam de tocar outros eventos históricos que também são dignos de reparação. Não é preciso olhar sequer para além das Américas para que se possa reconhecer a magnitude tanto desses eventos quanto de suas consequências. Houve, não só no Brasil, regimes de segregação baseados em cor, que conferiam seletivamente os direitos de seus cidadãos. Aqui, tivemos a libertação completamente desamparada de escravizados, que passaram, em um instante, de algo sequer humano, considerados apenas como objetos, a cidadãos que não têm assegurados nenhum de seus direitos previstos. Uma massa de indivíduos invisível aos olhos do Estado.
Em alguns países, guerras civis foram travadas para que humanos pudessem deixar de ser considerados propriedade. E ainda assim, não podemos dizer com segurança que a cidadania plena dessas pessoas foi atingida. Guerras foram travadas também pelos governos coloniais contra nações indígenas, que muitas vezes tiveram sua relevância apagada na história dos Estados que surgiram ocupando suas terras, o que se mostra claro com a tendência peculiar de tratamento desses povos sempre no pretérito. Como se simplesmente houvessem deixado de existir, a despeito de seus descendentes estarem aqui e ali hoje, vivendo diariamente a realidade que criamos.
É importante a compreensão de que as cicatrizes deixadas em cada um desses eventos, seja na Europa, África, nas Américas ou na Ásia, não são na verdade sequer cicatrizes. As feridas continuam abertas. O custo humano das consequências é de embrulhar o estômago quando visto dessa perspectiva. Talvez seja fácil demais construir uma narrativa que naturalize, na consciência de quem não vive essas consequências, o que aconteceu no passado. É fácil demais se deixar convencer de que o que aconteceu foi pontual, de que o momento já passou e foi superado. Corta-se a linha invisível do que une o passado ao que acontece no presente. Apesar disso, conhecemos os eventos históricos. Seria ignorância dizer que não. Mas é necessário deixar de relegar os esforços pela “Primavera das Reparações” a um ou outro “governo” abstrato, porque um governo é o seu próprio povo.
Para ir além
Sobre o/a autor/a
Lorena Niwa
Historiadora graduada pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), mestranda do curso de História da Universidade de Edimburgo e voluntária no Departamento de História do Museu do Holocausto de Curitiba.