Entre a versão e a subversão

Se "não se nasce mulher, torna-se mulher", como bem disse a Simone, também é verdadeiro dizer que não se nasce humano, torna-se humano. E na nossa cultura os humanos são subdivididos ainda em gênero, classe e ordem. Há uma versão pré-fabricada pela cultura para cada um de nós, a que somos forçados a nos moldar

Na coluna passada perguntei: resistirmos, a que será que se destina? Desde então, enquanto a matéria vida se faz cada vez mais fina, esfolada por verdades tão ásperas que seriam capazes de turvar a lágrima nordestina, uma frase faz amargar a cajuína em Teresina, a capital onde “mulher sai cedo pra voltar fazer comida”, depois da vacina.

É rima, não é solução.

Assim como também não é solução o homem, gestor público da saúde e de frases ingratas, se retratar.

Penso cá comigo: bom mesmo seria se o que ele disse fosse mentira. Se as mulheres não voltassem cedo para fazer o almoço, se não fôssemos as responsáveis prioritárias pela gestão doméstica e pelo cuidado.

Como seria olharmo-nos, intacta retina, e nos encontrarmos todas, todos e todes na mesma fila do pão ou da vacina?

Fosse esse o único acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas, eu poderia esquecer que no meio do caminho tinha uma pedra ou outra.

Sem mais rimas ou poesia que nos salve, recorro à figura de Nossa Senhora (ao som da voz de João Grilo em pensamento): “valeeeeeei-me!”. Nessa sequência de imagens de Maria esculpidas pela artista contemporânea Soasig Chamaillard, pergunto: com qual delas você mais se identifica?

Alerta de spoiler: no Instagram, a vencedora disparada foi a número 3, a santa polvo que tenta dar conta de tudo.

(Confesso que meu desejo secreto era poder votar na número 1: oi, sumida!)

Mas aqui, submersa cabeça-corpo-e-tentáculos em leituras sobre a construção das imagens da mulher na história, crente no poder do sangue derramado sobre as imagens da nossa cultura, pergunto: quem veio antes, a santa ou a polva?

Porque sempre que eu ouço alguém falar que antes de sermos mulheres nós somos seres humanos, eu fico na dúvida, com aquela cara do meme “me fale mais sobre isso…”, pensando: será mesmo nessa ordem? Será que podemos ser humanas ANTES de sermos mulheres, ou será que nós conseguimos, vez ou outra, existir como humanas, APESAR disso? Afinal, que horas dá pra ser humana, quando passamos a vida sendo educadas para ser sobre-humanas?

Se “não se nasce mulher, torna-se mulher”, como bem disse a Simone, também é verdadeiro dizer que não se nasce humano, torna-se humano. E na nossa cultura os humanos são subdivididos ainda em gênero, classe e ordem. Há uma versão pré-fabricada pela cultura para cada um de nós, a que somos forçados a nos moldar. Os que não se encaixam, ora, são subversivos.

As normas sobre como uma mulher deve ser e se comportar, o que se espera de acordo com a sua classe social, idade, raça, etnia e/ou religião são muito claras. Não seguir as regras também tem consequências amplamente difundidas, basta dar um Google na palavra “mulher” e clicar no botão “notícias” (vai lá e depois me conta).

A pergunta que me move e me instiga, no entanto, é sobre a forma: como essa imagem, esse molde ao qual tentam nos encaixar, foi construído ao longo dos séculos? De que maneira a arte contemporânea (essa subversiva) tem respondido a essa imagem?

Nas minhas pesquisas, tenho encontrado diversas personagens nas quais, inevitavelmente, todas as mulheres em um ou outro momento da vida esbarram como versões possíveis da performance da feminilidade: a esposa exemplar, a mulher desejável, a mãe, a prostituta, a exótica, a bruxa…  Mas, em meio a todas essas figuras, encontro sobretudo uma que reina soberana como a versão primordial do modelo de mulher, enquanto todas as outras performam, de certa maneira, a sua antítese, com num jogo de xadrez invertido, onde o objetivo é salvar a rainha e qualquer movimento contrário é punido com a morte. Essa figura é a da Virgem Maria.

Nos primórdios do cristianismo, quando todas as lágrimas ainda eram turvas e ainda não sabíamos como representar cada figura do Evangelho, a primeira versão de Maria foi inspirada numa outra versão da Magna Mater: a Deusa Cibele da Frígia.

Imagem da deusa Cibele representada com sua coroa e um par de leões no Século V antes de Cristo. Autor desconhecido.

Designada Deusa Mãe, Cibele simbolizava a fertilidade da natureza, sendo a divindade do ciclo de vida-morte-renascimento por meio da ressurreição do seu filho (e amante) Átis.

Muito antes disso, havia ainda outra Deusa, egípcia, representada em uma narrativa semelhante: Hathor. Mãe, esposa e amante, a Deusa Hathor era responsável por guiar o Faraó todas as noites pelo vale da morte e parir o Deus Sol a cada amanhecer. Ela também cruzava as fronteiras entre mundos e ajudava as almas mortas a passarem para o pós-vida — função também atribuída a Maria, após a fundação do purgatório, onde as almas poderiam se redimir de seus pecados na terra e alcançar o reino dos céus.

Sobre-humana, virgem, maternal, protetora, auxiliadora, essa grande mãe soberana exibe seu filho-troféu e nos estende a mão, numa promessa apaziguadora dirigida a nós, seus espectadores filhos: vinde a mim que eu te guiarei através da porta estreita e te protegerei dos perigos mundanos.

Cimabue, Maestà di Santa Trinita (1290).

No século XIV, Maria desce pela primeira vez do trono e toca o solo. O seio exposto alimenta não só o seu filho, mas os hereges numa metáfora para a conversão. O leite jorrado à distância é uma tentativa de eliminar o erotismo sexual de uma aproximação carnal que pudesse macular a sua imagem.

Alonso Cano, San Bernardo y la Virgen (1645).

Mais adiante, no Renascimento, o leite de Maria é substituído por suas lágrimas. Surge a figura da mãe sofredora, em múltiplas versões da Pietá. Daí em diante a figura de uma Maria humilde, com os pés descalços, que abre mão de si para salvar a todos é cada vez mais utilizada pela burguesia para exaltar a figura da mulher virtuosa, numa pedagogia voltada a estreitar os laços afetivos da família, da boa mãe e esposa.

Michaelangelo, Pietà (1498).

Se, por um lado, a imagem de Maria poderia ser adaptada para atender a propósitos distintos, por outro, isso não significa que sua mutabilidade tenha podido adaptar-se a todas as demandas sociais. Seu limite, explica a socióloga Isabelle Anchieta, estava na sexualidade.

“Se Maria era uma imagem que apaziguava as aflições de muitos, em contrapartida, causava angústia nas mulheres casadas e, sobretudo, nas prostitutas e cortesãs. Seu modelo moral abria um abismo na identificação entre elas. Para compensar a queda inevitável, a esposa deveria exibir um comportamento exemplar e submisso, controlando inclusive sentimentos e desejos, o que, na prática, parece ter sido um dos mais difíceis aprendizados sociais.”

Essa passagem poderia também ser dita da seguinte forma: não se nasce Maria, torna-se Maria.

Na arte contemporânea, as mulheres têm cada vez mais tentado, por vezes literalmente, criar contrapesos para essa imagem tão potente. Como na performance Eletrodoméstica (2019), em que a artista Aleta Valente é içada em uma estrutura de metal que equilibra um aglomerado de eletrodomésticos em uma de suas pontas e a própria artista na outra.

Aleta Valente, Eletrodoméstica (2019).

Em Bárbara (2019), Aleta nos apresenta uma versão contemporânea da antipietá. Nesse autorretrato, inspirado em uma manchete real de jornal, a artista encena uma mulher que teria dado à luz um bebê no interior de um presídio. Não há nem lágrimas, nem leite, nem gozo em sua expressão. Ela não é preenchida de amor ou terror, há em seus olhos uma solidão profunda.

Aleta Valente, Bárbara (2019).

Mãe solo na adolescência, moradora de Bangu, na periferia do RJ, Aleta desenvolve temas que giram em torno da subversão dos papéis domésticos e sexuais, impostos sobretudo às mulheres mais pobres. Exibindo sua obra em galerias da Zona Sul, Aleta também aponta para as distâncias abissais de oportunidades no mundo da arte não só entre homens e mulheres, mas também entre classes sociais distintas.

Entre Marias imaculadas e Aletas subversivas, temos ainda um longo percurso rumo a nossa humanização como mulheres na sociedade. O caminho não está pronto. Queimar sutiãs e garantir direitos é só o começo. É preciso aprender com as imagens a desaprendê-las. O desaprendizado é árduo. Desapegar da imagem de mulher perfeita, que toma conta de tudo e todos é também abrir mão do cetro e do trono, do poder que nos foi dado por meio dessa imagem. Quem está disposto a cortar os tentáculos, descer do pedestal e caminhar por aí de pés descalços?

Venham, venham. Mas cheguem tarde, para dar tempo de voltar e encontrar a comida pronta na mesa.


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