Ler é ouvir dentro de si

Nosso lugar no mundo influencia o modo como lemos e ouvimos

Há um ano o primeiro texto desta coluna foi publicado. Durante esse ano, em que me vi escrevendo sobre música quinzenalmente, diversas ideias que estão registradas aqui amadureceram, se transformaram, foram desenvolvidas ou engavetadas, mas a minha necessidade de encontrar uma forma de explicar para as pessoas o que eu faço segue viva.

Em meu texto de abertura (“Maestra?!”) comparo o ofício da regência com o de cozinhar, a partitura com uma receita, os processos de estudo, ensaio e concerto com os processos de preparo e deleite de uma refeição. Ali tento direcionar meu trabalho ao encontro do cotidiano das pessoas.

Na segunda-feira desta semana compartilhei em meu Instagram um carrossel que tenta, mais uma vez, explicar meu ofício. Mas, agora comparo a regência com a direção cênica. Não à toa fiz essa escolha. Na quinta-feira publiquei um vídeo, também no Instagram, em que lancei algumas ideias sobre o gênero da escrita musical e interpretação. No texto de hoje quero aprofundar esses assuntos. Para isso precisaremos dar alguns passos para trás e entender o contexto da música de concerto e da partitura, sua importância, suas limitações e seus transbordamentos.

Escrita musical

O registro de existência musical é pré-histórico. Fósseis documentam a possibilidade de instrumentos primitivos, e segundo a autora Maria Nazaré Valente de Sousa, a música é uma forma de comunicação tão antiga quanto a linguagem, e tal como demais áreas do conhecimento, necessitava também de um sistema base de escrita que permitisse sua preservação ao longo do tempo.

Entre os séculos IX e XV a base da corrente notação musical foi desenvolvida no continente europeu. Assim, a música ganhou uma possibilidade de grafia que registra alguns parâmetros do som. Diferente dos alfabetos, que tem símbolos de aparência arbitrária, e que usamos para registrar os fonemas da linguagem falada, a grafia musical se estabeleceu de outra forma. Na partitura se registra, sobretudo, a duração e a altura do som.

É importante lembrar que quando nos referimos a “notação” estamos falando do ato de grafar por meio de símbolos uma determinada ideia, ou indicação concreta. No caso da música, ela existia no mundo de maneira concreta e a escrita surgiu para registrá-la. 

Ressalto também que toda forma de expressão cultural – seja ela escrita ou oral – é influenciada pela evolução social, e isso é uma consequência natural do desenrolar da história. Assim, a existência da notação musical, que em um primeiro momento registrava uma música existente de maneira concreta, passou a registrar uma ideia de música.

Isso alterou os parâmetros de como se faz música no ocidente. Gradativamente a composição foi ganhando espaço, enquanto a prática de improvisação foi sendo deixada de lado. Dessa forma, a existência da partitura possibilitou que a criação musical não dependesse da prática musical em si, e que a prática musical recebesse uma série de instruções de performance mesmo na ausência do compositor.

Mas como mencionei anteriormente, a partitura registra apenas alguns dos parâmetros do som. A cada dia essa notação evolui e agrega novos símbolos que ampliam o léxico musical escrito. Porém, mesmo que esforços sejam feitos para ampliá-la, ela sempre será limitada, como tudo é.

Interpretação musical

O autor Nicholas Cook, em seu texto “Entre o processo e o produto: a música e/enquanto performance”, nos apresenta duas correntes opostas de pensamento sobre interpretação musical. Uma considera o intérprete um desviante, um corruptor, a outra considera o intérprete um enriquecimento à música.

A primeira linha de pensamento compreende que a partitura é a obra musical. Esse pensamento se justifica no fato de que a produção de conhecimento ocidental acontece pela escrita. Então, se a partitura é a música escrita, ela seria a obra musical, e tocá-la seria apenas um meio de acesso para os não letrados em música. Por isso, o performer deveria esforçar-se para retirar-se da leitura, apenas executá-la e não a interpretar.

Entretanto, como menciono anteriormente, a notação registra possibilidades concretas de atuação no mundo. Assim, a via oposta ao pensamento exposto acima, compreende como obra musical a performance. Desta forma, o intérprete não seria um corruptor do que está escrito, seria um co-criador da música. O autor Christopher Small observa: “uma performance não existe para que obras musicais sejam apresentadas, mas, pelo contrário, obras musicais existem para que o performer tenha algo para interpretar”.

O problema destes pensamentos opostos é que eles se opõem superficialmente e inviabilizam o diálogo. Enquanto um tem sua atenção voltada para a partitura o outro tem sua atenção voltada para a performance. Mas, a realidade é que nunca estamos cantando e/ou tocando, simplesmente, estamos cantando e/ou tocando algo.

A chave é perceber que tudo importa, mas é preciso observar que grau de importância estamos colocando sobre cada uma das partes. A música de concerto se estabeleceu de forma a exaltar os criadores dos textos musicais e também os intérpretes de alta performance. Há um personalismo que por diversas vezes nos leva a ouvir Mahler ou Bach independente de quem esteja tocando, mas outras vezes ouvimos Yo-Yo Ma ou Nelson Freire independente do que eles estejam tocando.

Escuta musical – uma busca por autonomia

“Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois quando nele se entra novamente, não se encontram as mesmas águas, e o próprio ser já se modificou. Assim, tudo é regido pela dialética, a tensão e o revezamento dos opostos. Portanto, o real é sempre fruto da mudança, ou seja, do combate entre os contrários” disse Heráclito incontáveis anos atrás.

Toda vez que se toca, que se lê e que se ouve uma obra musical estamos fazendo isso sob uma determinada ótica. Uma ótica que fala sobre nós em relação à obra naquele momento. Onde, quando e como estamos localizados no mundo cria um lugar de escuta, que nos faz receber aquelas informações, seja lendo ou ouvindo, de uma determinada maneira, que só é possível naquele presente.

Uma performance musical não exaure todas as possibilidades que uma partitura propõe, assim como grafar música não esgota as formas de soar. Por isso gosto de pensar na partitura como um roteiro, assim percebo que as partituras orientam uma performance, mas não determinam ela.

Há decisões de parâmetros do som como timbre, dinâmicas, articulações e andamentos que, por mais que estejam escritos, são imprecisos. Portanto, é preciso que o performer decida como aquilo deve soar. Na música de conjunto os ensaios vêm a este propósito: unificar maneiras de soar, testar o que acontece quando tocamos de um jeito ou de outro e decidir por um que nos faça sentido.

Essas decisões tomadas por meio do contato com a partitura, com outros músicos e com conhecimentos teóricos, históricos e culturais são o que chamo de autonomia da escuta. Pensar a música enquanto performance é compreender que nenhum aspecto pode ser considerado irrelevante na construção de sua potência. Se dispor a conhecer diversas possibilidades de soar implica um intenso trabalho de ouvir a si, ao outro e ao todo.

Griô ou griot (no feminino) é como se chamam os contadores de história em alguns países da África ocidental. Além de contar histórias, griô e griot também têm o papel social de mediadores, eles são como pontes entre as pessoas. Eles mediam conflitos, atuam como conselheiros, transmitem conhecimentos ancestrais, tudo por meio da oralidade.

Hassane Kouyaté, um griô de Burkina Faso, compreende que a escrita não matou a oralidade, mas foi a forma com que organizamos a sociedade que afastou as pessoas umas das outras, as impedindo de se ouvir. Para Hassane Kouyaté: “A palavra escrita é uma palavra que está deitada, que dorme. E aquele que a escreveu ele fala, ele fala lá na cabeça dele antes dela ser escrita. Então, por que opor as coisas?”.

Todo som pode ser ouvido dentro de nós, e o que fazemos com eles é o que importa. Uns os colocam no papel, outros transferem para instrumentos, outros cantam. Às vezes me parece que na música eu gostaria de ser uma griot, fazer a mediação entre os que ouvem dentro de si e os que ouvem fora de si os sons. Percebo aqui, agora, que regência se trata de ouvir e direcionar, mediar, ser ponte.       

É com isso em mente que ouço a voz de Ney Matogrosso cantando em minha cabeça: “Eu não sei dizer, nada por dizer, então eu escuto”. Por fim, gostaria de lembrar: o contato nos enriquece de possibilidades, ouça.

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