Trem dos doidos

Quem acreditaria em alguém com o cérebro machucado? As consequências são tão perturbadoras, que tem hora que desacreditamos até da gente. Balela. Neste mundo com pouco sentido, nem todos precisam de um cérebro completo para continuarem vivos

Durante muitos anos, o maior medo dos mineiros era ser colocado em um trem de carga, que surgia de não sei de onde e ia para lugar algum. Era o famoso “trem dos doidos”, título imortalizado pelo escritor Guimarães Rosa, que carregava consigo todo tipo de pessoa considerada não benquista pela sociedade: mulheres grávidas sem marido, desocupados, negros e em sua minoria, pessoas com lesões psiquiátricas.

O fato era que, assim, as pessoas que já se encontravam marginalizadas, eram oficialmente excluídas da sociedade e enviadas ao terrível Hospital de Barbacena, onde se extinguiam. Não é de hoje que não privilegiados são deixados à própria sorte, sem tratamento e dignidade. Infelizmente já faz parte da história humana mecanismos de desigualdade, e todos têm medo de passar por tal experiência. Ninguém quer entrar no trem dos doidos.

Quem sofre uma lesão cerebral nem sempre enlouquece. Temos, sim, nosso corpo e percepção danificados, porém, a maioria passa longe dos estágios finais de demência. Tal fato está interligado com a área afetada pela lesão. E como nós, sobreviventes de AVC, geralmente temos o lobo parietal machucado, um local responsável por várias funções, mas não focado nos estímulos do pensamento, é comum AVCistas manterem um considerável nível de consciência. Quase todos sabemos onde estamos e o que está acontecendo, e talvez esta seja uma das características mais perturbadoras da nossa história.

Ainda hoje não julgo as pessoas que acham que quem perdeu parte do cérebro deixou de bater bem das ideias. Antes do acidente, também compartilhava desse mesmo pensamento limitado. Confesso que se não tivesse perdido parte do cérebro, graças aos meus AVCs, e conhecido tanta gente capaz em semelhantes condições, também me surpreenderia com a minha inteligência e desenvoltura. Todavia, compreendendo que tal fenômeno não seja fruto somente da minha bem-sucedida reabilitação neurológica, mas dos mecanismos que desenvolvi durante a minha sobrevivência, dentro e fora do hospital.

Passar por uma lesão cerebral é, definitivamente, sair da zona de conforto. Não há quem não se desespere em acordar de um coma e sentir metade do corpo imobilizado, sem contar aquela sensação de estar submerso na linha tênue entre a vida e a morte. Dói no corpo e na mente. E ao se dar conta de que a vida de antes nunca será a mesma, a primeira vontade é de morrer. Apesar de sempre ter visto a vida de forma positiva, no meu primeiro ano de AVC tinha a eterna sensação que iria morrer a qualquer momento. E de certo modo, esse pensamento me aliviava. Era como se tivesse dormido e acordado no tenebroso trem de Minas, e a minha vida estivesse totalmente fora dos trilhos.

Porém, sobreviver ao acidente vascular cerebral não chega perto de enfrentar a luta diária que é a vida após ele. Não digo isso apenas pelos imensos desafios impostos nos longos anos de reabilitação, mas da intensa solidão que engloba a vida de quem tem um cérebro machucado. Ninguém nos entende, nem a gente mesmo. Porque com o cérebro danificado, somos brutalmente apresentados à nossa personalidade, com o seu lado mais sombrio totalmente descontrolado.

Com as emoções à flor da pele, choros e histerias fazem parte da rotina. E sim, a gente sabe disso, por isso nos sentimos culpados logo após os nossos rompantes, erroneamente vistos como “surtos” (palavra que abomino desde que passei a conviver com o meu atual sistema nervoso). Chorar demasiadamente faz parte das sequelas de quem tem o cérebro lesionado. Dá até raiva (outro sintoma frequente), porque ao mínimo sinal de estresse, o aparente controle emocional, que achávamos que tínhamos, se dissipa de tal forma que transforma todas as nossas certezas em seu extremo oposto. É muito difícil.

Sobreviver a situações extremas nunca é fácil. Para viver um dia após o outro, é preciso aprender muito sobre si mesmo e sobre o outro. Não é todo mundo que se aproxima e são muito poucos os que oferecem qualquer tipo de ajuda. Parece até que estamos infectados com algo extremamente contagioso. São poucos os que se aventuram a socializar conosco, fazendo com que na maior parte do tempo, fiquemos cheios de nós mesmos. Assim, vamos nos descobrindo egoístas e generosos, covardes e corajosos, desistentes e perseverantes, amáveis e rudes. A vida é realmente cheia de opostos, constatei isso depois do meu AVC. E todas essas percepções acontecem ao mesmo tempo. A cada novo passo torto, lembramos de como gostamos de estar em pé, e a cada tristeza diante de uma limitação, nos damos conta de como somos pequenos diante das nossas vontades. Apesar de nenhuma delas ser impossível.

Viver em um mundo com tantos revezes não nos torna guerreiros, um adjetivo que considero ilusório e erroneamente designado às pessoas com deficiência, tendo em vista que não há maneiras de superá-la. O único caminho é adaptar-se a ela. Simples assim. Talvez tal diversidade nos faça sermos confundidos como “doidos”, quando, na verdade, estamos sendo extraordinários. Não identificar tal diferença é uma das características mais típicas de nossa limitada sociedade.

Hoje, apesar de detestar minhas sequelas com toda a força do mundo (principalmente diante de uma garrafinha fechada, já que tenho uma das mãos com difícil destreza), acredito que decidi ter uma vida após AVC não tanto pela coragem, mas pela doçura. Tal característica minha, quase sempre desprezada em minha primeira vida, foi que me salvou do meu aniquilamento após o meu apocalipse. Em meio a todos os terrores impostos, suportei cada um deles por escolher os inúmeros caminhos do amor. Lembrei-me que era humana (e consequentemente capaz de enfrentar os maiores desastres) ao descobrir que ainda tinha a capacidade de estreitar laços por meio do afeto, e assim, pude transformar minha dor em ressignificação.

Poucos são capazes de fazer isso, porém, incrivelmente, a maioria dos sobreviventes de lesão cerebral conseguem. Cada um do seu jeito, é claro, pois apesar de estarmos no mesmo vagão, mantemos nossas peculiaridades. Talvez eu tenha ficado doida, ou sempre tenha sido. Sei lá. É necessária certa dose de loucura para sobreviver a esses padrões e exigências imaginárias que inventaram. É assim que lidamos diante dos revezes da vida. Foi assim que sobrevivi, e ainda continuo sobrevivendo. Todos estamos.

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