Habeas corpus

Assim como muitos encarcerados, Lísia se comunicava com o mundo com os olhos

O nada. Talvez este seja o maior medo de muitas pessoas. Falo daquele medo do escuro, do não existir, de desaparecer visualmente. Mas, já parou para pensar que uma das coisas mais tenebrosas que existem na vida é o tudo? É o “tudo” acontecer; todas as coisas continuarem existindo sem você poder interagir com elas e continuar a cumprir a sua função no mundo. Imagine o quanto seria angustiante somente assistir à rotina de sua vida como um mero espectador: sem movimento, sem palavras e sem realizar suas mínimas vontades.

Todos nós AVCistas sentimos um pouco dessa sensação no dia do nosso acidente. Ela pode se fixar em segundos, minutos ou até horas. Vivê-la é tão dolorosa que, mesmo sendo por um tempo mínimo, é capaz de gerar grandes traumas. Cada AVC é único: com sua história e suas peculiaridades, e dentre seus vários graus, existe o que acredito ser o mais terrível: o AVC de tronco, que atinge especificamente a conexão entre a medula e o cérebro, fazendo com que o paciente pare de sentir e mover todo o corpo da cabeça para baixo, porém, mantendo consciência de tudo o que está acontecendo ao seu redor. A medicina chama esse terrível estado de “síndrome do encarceramento”.

Confesso que, apesar de ter conhecido esta síndrome nos grupos de apoio de sobreviventes, nunca me senti muito à vontade para falar sobre ela, pois, graças a Deus, não passei por tal experiência. Tive a imensa sorte de passar por episódios de deliriuns que me ausentavam da realidade diária de uma UTI. O mesmo não ocorreu com uma amiga chamada Lísia, que teve esse tipo de AVC aos trinta anos de idade e que passou pela sensação de estar “enterrada em seu próprio corpo”, como ela mesma me disse.

Como esse estado impossibilita a fala e a expressão facial, Lísia só conseguia mexer os olhos: sua única forma de comunicação com o mundo. E, não por menos, sua primeira reação foi o de chorar copiosamente. Acho que todos nós fazemos o mesmo em nossos primeiros dias de sobrevivência, amiga. Todavia, tenho a impressão de que naqueles angustiantes dias você chorou por todos nós. Você já tinha uma consciência exata da prisão que o AVC nos traz, e de como ele é injusto e assustador. Eu só percebi tal coisa muito tempo depois, mas você sentiu desde o primeiro dia, e acredito que chorou por mim, também.

Assim como muitos encarcerados, Lísia se comunicava com o mundo com os olhos, por meio de um processo muito cansativo: com a ajuda de um de seus acompanhantes, ela olhava letra por letra de um abecedário e as selecionava por meio de piscadas. Assim, juntava uma a uma. Formar palavras demorava muito. Frases, então, exigiam até horas de seu cérebro machucado. Toda vez que a imagino nesse estado, me lembro de um canário triste cantando em uma gaiola. A princípio, pensei que a referência estivesse relacionada ao fato de sua cor preferida ser o amarelo, mas a comparação vai muito além disso: ela é uma das pessoas mais livres que tive a oportunidade de conhecer. É cada coisa que a gente passa com esse tal AVC… Por uma ironia do destino, parece que ele nos testa nos tirando o que temos de mais forte. Definitivamente, é um divisor de águas em nossas vidas.

Assim como toda lesão cerebral, lidar com as sequelas de um AVC de tronco encefálico é uma roleta-russa neural porque a gente não sabe o que vai acontecer. Não sabemos se vamos nos recuperar ou até que ponto a reabilitação vai funcionar. E o prognóstico desse tipo de acidente também é desanimador, já que ele consiste em uma prisão perpétua: viver encarcerado, emitindo, no máximo, alguns murmúrios. Tudo muito pouco para libertar uma vida, para continuar uma história. Ouvir isso de uma equipe médica deve ter sido muito duro para os familiares dela; deve ter sido como presenciar o enterro de uma filha viva; fechar, para sempre, a gaiola da minha amiga-canário.

Ao sentir que sua rede de apoio estava muito aflita, ela se prontificou a se comunicar com eles pelo jeito que dava: pelo olhar. Com muito esforço, choro e paciência, ela finalmente conseguiu dizer: “EU ACREDITO NA CURA”. E, mais uma vez, Lísia falou por todos nós. Mesmo diante das piores circunstâncias, todo AVCista tem fé em sua recuperação, porque acreditar é o único caminho que nos resta, e a gente topa qualquer parada para não perder a coragem diante de tanta dor física e emocional.
Movimentar-se após um AVC dói muito, parece que os músculos se endurecem. Tomar um gole de água é como deglutir pedra, levantar-se da cama é como erguer cem quilos, e toda vez que a gente molha a fralda, se esvai um pouco mais a nossa dignidade. Mas, o caminho para se recuperar é esse: envolto por infinitas dores, que vão desde enfrentar a sensação de cãibra da espasticidade muscular, até a frustração de saber que ainda não conseguimos realizar as atividades mais básicas.

Assim também foi o caminho de Lísia na luta pelo seu habeas corpus; pela recuperação de sua liberdade injustamente interrompida. Foi lentamente e com muita dor, que ela voltou a falar, a andar e a sorrir. Muitas pessoas podem achar que tudo isso foi um milagre, porém, todos nós sobreviventes sabemos que, apesar de nossas vitórias terem um toque divino, elas exigem muito de nós. Todo AVCista tem o mérito de cada minúscula evolução. Independentemente de onde chegamos, cada etapa do caminho percorrido é muito difícil.

E o destino quis que minha amiga quebrasse várias barreiras. Sempre foi assim, né? Você nasceu mulher, escolheu uma profissão dominada por homens, tem o seu próprio jeito de amar… Você veio ao mundo para se libertar de diversos cativeiros, inclusive do pior de todos: o encarceramento cerebral. Você nasceu para voar, Lísia, um dom destinado a tão poucos seres. Parafraseando o poeta Quintana: foram diversos “tudos” que atravancaram o seu caminho. Eles passaram. Você, passarinho.

Observação importante: por mais empatia que eu sinta pela história de minha amiga-irmã, sempre me sentirei limitada ao contá-la. Por este motivo, indico o seu livro para quem quiser saber mais sobre o assunto: “Como assim AVC?”, Lísia Daniella, editora Dialética, 2021.

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