O Amor e o AVC

A experiência de um AVC faz desacreditar do amor. Mas existem histórias como a de Kelly e Alan, capaz de unir as palavras “amor” e “AVC”

Curitiba é uma cidade fria e introvertida. Definitivamente, a bela capital paranaense não é muito reconhecida pela sua sensibilidade. Ouso dizer que é pouco carismática. Se fosse uma pessoa, provavelmente seria uma daquelas solitárias que envelheceram cedo demais, e que vivem reclamando daqueles que jogam lixo no chão e dos que suspiram apaixonados dentre suas ruas nubladas. Curitiba sempre foi pouco sociável, tem poucos amigos e não fala com estranhos (mesmo quando eles são os seus vizinhos).

Mesmo tendo esse caráter reservado, nossa típica cidade foi surpreendida com a chegada de dois visitantes em meados de maio, bem quando ela se preparava para mais um intenso inverno. Foi nesse tempo que Kelly e Alan aqui chegaram com um objetivo pouco comum à maioria dos turistas, mas muito recorrente no mundo do AVC: terapia neurológica especializada.

Dois AVCs cruzaram a vida do jovem casal em 2020, especificamente na cabeça de Alan, sendo o primeiro isquêmico e o segundo hemorrágico. Eles ocorreram devido a uma complicação cirúrgica aliada a um erro médico. (Pois é, essas coisas acontecem). Ele tinha 36 anos, e ela 33. Depois de mais de quinze anos juntos, de repente tudo mudou. O dia a dia corrido, cheio de trabalho de ambos foi substituído pela aprendizagem contínua de uma nova vida. Enquanto ele buscava novas formas de lidar com a afasia, ela iniciou sua busca por todas as informações sobre lesão cerebral adquirida. Durante todo esse tempo, Kelly nunca cogitou soltar a mão dele. Também pudera, Alan nunca soltou a sua.

Se um acidente vascular cerebral é devastador, imagine dois! A aflição, o medo e a luta são redobrados. O buraco que se abre no chão e quase nos engole torna-se ainda maior. É algo que realmente assusta, e é nesta hora que quase todos se afastam para viverem suas vidas e deixam o sobrevivente com a pior de todas as sequelas: a solidão. Infelizmente, esse movimento é comum até entre casais. Em nosso mundo, divórcios são frequentes logo nos primeiros meses de reabilitação. Com Kelly e Alan foi diferente, eles decidiram enfrentar juntos cada passo da nossa luta diária. Acredito que a essa exceção se deu pelo simples fato de o amor deles ser simples e verdadeiro. Não se trata de algo sublime e artificial, tão representado nas capas de revistas. É um amor calmo e colorido em tons de pastel, que acalma e acolhe todos em sua volta, capaz de transformar, como a própria Kelly gosta de falar, “todo dia em um dia bom”.

Talvez pareça um pouco piegas descrever um sentimento tão forte, também pudera, não existem palavras para descrever a felicidade que é estar perto de pessoas assim. Só posso dizer que todos que passavam por eles sorriam. Não apenas esta que vos escreve, mas a moça que trabalha no restaurante da Rua 24 horas, o caixa do hotel em que eles ficaram hospedados, as terapeutas que avaliaram o Alan, todos sorriam sinceros porque, de alguma forma também participavam um pouquinho daquela história. E isso tudo bastava. Aquele minuto era um tempo feliz e valia a pena ser vivido. Por incrível que pareça, durante os dias que ficaram aqui, até Curitiba se abriu para eles. O clima milagrosamente mudou e trouxe dias ensolarados e quentes, sem contratempos chuvosos e picos de trânsito. Tenho impressão de que até as flores da Rua XV e do Jardim Botânico se desabrocharam para compor um cenário mais acolhedor nas fotos.

Durante esse turismo por conveniência, os dois maranhenses me ensinaram que existe amor depois de um AVC, e que ele é maduro e sensível, porque só assim a gente dribla as tristezas da nossa vida. Muitos revezes são inevitáveis, a diferença está em como lidamos com eles. Kelly e Alan se encantaram por Curitiba, mas no fundo, acho que foi a cidade que se encantou por eles. Mesmo depois de sua partida, ela deixou de ser um pouco cinza. A carrancuda senhora se pegou sorrindo de vez em quando, talvez tenha gostado da ideia de ter dias bons. Depois deles, ela nunca mais foi a mesma.

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