Meu amigo Dinho

O AVC mudou minha rotina, minha forma de me divertir e minha história. Todavia, ele também me trouxe muitos ensinamentos e uma nova forma de pensar. Ela me conectou ao Dinho

Tudo começou em um dia tumultuado. Foi no meio do trânsito da capital paulista que a dor começou. Uma dor intensa, anormal, que não poderia ser deixada de lado. Mas ele estava no meio do expediente e precisava finalizar uma entrega. Sendo um motoboy responsável, só depois de finalizar aquela etapa do serviço, pediu licença para ir ao hospital ver que dor era aquela.

Não foi atendido prontamente. Quase como de costume, foi subestimado e pré-julgado: uma pessoa qualquer em busca de uma declaração. Após ser medicado com analgésico e soro fisiológico, foi liberado para casa; para uma possível morte. Mas todos estavam errados, Dinho não morreu e muito menos queria um simples atestado: apenas estava sobrevivendo, como sempre. Persistente, retornou ao hospital e insistiu para ser atendido com mais atenção. Algumas pessoas têm um dom extraordinário de lutar por suas vidas. Dinho é uma delas. Mesmo sendo inicialmente ignorado, conseguiu mostrar o que realmente estava acontecendo por meio do resultado de uma tomografia. Não era desculpa, nem dramaticidade, eram oito coágulos na cabeça, uma das mais terríveis causas de um AVC Hemorrágico.

Foi assim que Dinho entrou na minha vida e eu entrei na dele, em tempos diferentes. Em março (no primeiro AVC dele) eu ainda não tinha tido o meu, estava nos meus “pegue e pague do mundo”, ignorando a minha insônia e ansiedade repentina. Dois meses depois, tive os meus naquele fatídico mês de maio, e ele teve o seu segundo em agosto. Coisa de destino ou de resistência. Sei lá, tem coisas que a gente não sabe como descrever. Só vive. Passar por mais de um AVC, as terríveis dores das cirurgias na cabeça e a profunda solidão que precisamos suportar na reabilitação. Tudo isso esteve presente no nosso 2019. O ano que marcou nossas vidas.

Seu contato me foi passado por uma sobrevivente por causa de nossas semelhanças trágicas numa idade tão próxima. Porém, a tragédia neurológica era a única coisa que tínhamos em comum. Dinho é introvertido e eu sou extrovertida. Ele é de São Paulo, sou de Curitiba. Ele é de Peixes e eu sou de Virgem. Ele é prático e eu sou teórica. E, ainda por cima, ele é Palmeiras e eu Corinthiana. Se você acha que as discussões eram intensas, acertou! Dois mundos muito diferentes não tinham sentido serem aglutinados. Se não fosse o AVC, nossas diferenças nunca nos aproximariam.

Existem coisas compreensíveis apenas por quem tem a cabeça lesionada, por aqueles que lidam com um combo de implicações da noite para o dia. Além disso, eu e o Dinho ganhamos o “bônus” das sequelas invisíveis (dor, sensibilidade, instabilidade, perda de memória, entre outras). Todas essas intercorrências são invisíveis, assim como nós dois fomos no decorrer da vida, apesar de nossas múltiplas potencialidades. Tudo que é intangível causa descrença. No caso da dor, há a particularidade de ela existir apenas para quem a sente. Depende do outro ouvir e acreditar. É ele quem decide se tem empatia ou não. Dinho sempre acreditou em mim, e isso foi um diferencial imenso naquela época. Foi justamente essa empatia que nos aproximou, apesar de sermos aparentemente tão opostos. Quando começamos a nos escutar, percebemos o quanto somos iguais.

Todavia, esse processo de reconhecimento demorou para acontecer. Assim, como muitos sobreviventes de AVC adquirimos uma inflexibilidade mental, que carrega consigo a ideia de que nada pode ser mudado. O mundo fica muito pequeno depois de um AVC, tanto na percepção física como cognitiva. Muitos pacientes desenvolvem manias aparentemente incompreensíveis, como utilizar somente um determinado copo e persistir em uma rotina sistemática. Quem está de fora, julga, acha que ficamos chatos, mas, na nossa cabeça, aquela percepção é o nosso único vínculo com a realidade.

É tomando água no mesmo copo que temos a percepção de que estamos na cozinha. É por esse mesmo motivo que o afastamento de familiares e os amigos é tão violento para nós: sobretudo nos primeiros meses, as pessoas que nos rodeiam se tornam o nosso senso de comunidade. Sem elas, esquecemos da importância de sociabilizar. Ficamos absortos no vazio de nossas cabeças e quartos.

Como o Dinho apareceu logo no início da minha segunda vida, estruturei um vínculo de confiança com ele que é um dos mais fortes que já tive. Parece que ele me conhece desde que nasci, e até certo ponto isso é verdade. Foi com ele que dei os meus primeiros passos e passei a ter controle da minha mão lesionada (já que ele insistia todos os dias para eu continuar os exercícios). Era com ele que conversava nas filas infindáveis do INSS, e que estava comigo quando eu me sentia completamente sozinha. Deve ser por isso que, até hoje, nos meus dias ruins, ele é o único capaz de me tirar dos pensamentos destrutivos. De certa maneira, ele me conhece. É capaz de me acolher e, ao mesmo tempo, chacoalhar as minhas ideias. Hoje em dia, nem existe sentido em discutir com ele, nossa amizade já se tornou maior do que futebol, modo de vida e religião.

Muita gente acha que a experiência de ter passado pelos AVCs é que me tornou mais sábia perante a vida. Acredito que foi depois. Foi a roleta russa neural pós-acidente que me obrigou a entender certas sutilezas de como podemos encarar a vida. Coisas importantes são difíceis, e grandiosas relações não são feitas apenas de semelhanças, mas também de diferenças. Foi exatamente em uma pessoa diferente de mim que encontrei meus mais profundos valores. Se você pensa que sou sensata e acolhedora, é porque nunca teve uma conversa séria com o meu marrento amigo paulistano. Ele é zika!

Há quem pense que o mundo do AVC é um pesadelo. Realmente ele é. Viver após um acidente vascular cerebral é lidar com incapacidades e preconceitos todos os dias. Ninguém nos entende, e tem vezes que nem nós mesmos nos entendemos. É como no mundo dos miolos cheios (os privilegiados de cérebros intactos), mas com muito mais intensidade. Viver com um cérebro machucado é lidar com choros e risos todos os dias; é dormir achando que não há mais solução e acordar pensando em tentar só mais uma vez; é relembrar o passado com saudade e aprender na marra a ter orgulho das nossas cicatrizes. É se sentir sozinho numa multidão e encontrar apoio onde menos se espera. É se reabilitar todos os dias. É sentir na pele todas as aprendizagens e inseguranças da vida. Na verdade, o mundo do AVC não é um universo à parte. É o mesmo mundo, apenas nele lidamos abertamente com as nossas sequelas.

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