Enfrentamos tantos desafios ao lidar com um desastre, que dificilmente analisamos nossas atitudes perante ele. O caos forma uma névoa tão grande diante de nossos olhos, que ficamos incapazes de saber quem somos: heróis sem capa. Esta é a história de uma delas.
É bem cedo, até para o sol que, preguiçoso, se estica pela zona leste de São Paulo. Sandra, heroína sem capa, acorda e vai fazer o café. Chama os filhos: a mais velha vai para o colégio sozinha, enquanto o menor ainda precisa ser arrumado. Leva o pequeno para a escola e vai para o trabalho. Sandra é mãe solo: faz tudo sozinha e está sobrecarregada. Melhor assim, diz para si mesma. Ela é como tantas outras mulheres brasileiras, é heroína sem capa, e como a maioria delas, não sabe que é heroína pela falta do acessório. Rotina.
Os anos passam, ainda sobrecarregada ela continua seu dia a dia. A filha mais velha foi para a faculdade, o menor está no Fundamental II. Tudo pago com o dinheiro esticadinho. Vida no limite, porém sem dívidas. Até que um dia surge uma forte dor na virilha, do nada. Será apendicite? Foi ao médico e saiu medicada. Foi dormir, se levantou para um novo dia e, pela primeira vez, caiu. Tentou se levantar novamente e não conseguiu. Com o lado direito adormecido, foi acudida pela filha. Hospital.
Foi para a tomografia, era AVC no tálamo: cápsula interna. Muito raro e causa desconhecida, talvez um coágulo na perna que subiu e se alojou no lugar errado. Ninguém sabe como, muito menos o porquê. Só se sabe o resultado disso, todos sabem. Foi para casa e tentou respirar. Muito difícil se situar, saber por onde começar do zero. Está tudo fechado. Pandemia.
Sandra, com neurônios inteligentes e não afetados pelo AVC, procura ajuda na internet. Com dificuldade, escreve. Também, com dificuldade, anda, fala, tudo. Sempre foi assim. Ela é heroína sem capa, lembra-se? Ainda não se conhece, não sabe a força que tem. Pensa no futuro dos filhos e chora. Não pode se dar ao luxo de ficar doente, com parte do corpo retorcido. Não pode deixar de ganhar extra, de batalhar. Mãe.
De cuidadora a ser cuidada. Mas ainda não está na hora. Seus filhos ainda não estão prontos, nem saíram do ninho. Ainda estão em gestação, se preparando para a vida adulta. A heroína se culpa, pela primeira vez acha que não vai dar conta, que esbarrou em sua criptonita. Ao seu redor, um lar que também sofreu um AVC, bagunçado e desconcertado como o seu cérebro. É assim mesmo com todos nós, mas Sandra ainda não sabe disso e se critica. Solidão.
Ela se reabilita como pode, com ajuda de outros sobreviventes nas redes virtuais. Nossa protagonista se tornou seguidora. Assim conhece neurologistas, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais e outros sobreviventes, que assim como ela, estão em busca da reabilitação. Todos são heróis sem capa, mas por não sentirem seus mantos, não veem sua bravura. Luta.
Sandra não sabe o que está acontecendo com ela. Chora e se irrita com facilidade. Todo pouco é muito. Briga com os filhos, briga com o namorado. Assim como o seu corpo, tudo está desequilibrado. E ela, inerte, nada pode fazer, tudo por causa do AVC. Chora muito, não se reconhece. Tudo dói: o corpo, a mente e a preocupação com o futuro. Todas as emoções são grandes, elas explodem e afastam todos à sua volta. Labilidade.
A ordem das coisas muda: não tem mais hora do almoço, não tem que fazer a revisão da lição de casa, não existe mais o aconchego antes de dormir. Agora a concentração está em andar, falar, exercitar a mão, a escrita, em esticar os músculos para não doer. Evitar que a dor chegue na alma. Sandra não consegue dar conta, muita coisa ao mesmo tempo, mas ainda se importa com todas essas coisas. Nunca deixou de se importar. Prioridade.
A escola do filho liga, pedem uma reunião. O pequeno anda disperso, deve ser algo em casa. Tudo culpa da mãe, como sempre é julgada. Vai até lá com esforço, no banco de carona de um carro de aplicativo. Anda com dificuldade, com sua mão encurvada. Mostra sua bengala e esconde o desconforto de seu novo corpo com a coragem que só ela tem. Ouve, argumenta e acolhe o seu pequeno com sua capa invisível. Ela sabe o que está acontecendo, ele está amadurecendo à força, cedo demais. Enfrenta mudanças, todos também. Aceitação.
Emoção à flor da pele, nervos doloridos. Mesmo diante das dificuldades, julgamentos e exaustão, ainda acorda antes do sol. Faz tudo o que pode e o que não pode, como sempre fez. No mundo do AVC, ela também é mãe de todos. Preocupa-se e orienta aqueles que lhe procuram. Importa-se e vai atrás. Faz tanta coisa, transborda tanto conforto que, a cada dia que passa, sua capa vai ganhando cor. Ela ainda não consegue ver, mas a gente, sim. Seu manto é feito da fibra mais resistente que existe: força, suor e lágrimas. É uma capa que todas as matriarcas têm, mas que no caso dela, ganhou um novo tom ao sobreviver a um AVC. Amor.
Sobre o/a autor/a
Camila Fabro
Formada em Letras pela UFPR e sobrevivente de 2 AVCs. Idealizadora nos projetos OLHARES e DESMIOLADA em prol da comunidade avecista. (@camiladesmiolada)