Uma aberração pedagógica e uma perversão ideológica

A escola cívico-militar não é um projeto educacional ou pedagógico. Nenhuma entidade, pesquisador ou pesquisadora em educação a avaliza

A partir do próximo ano, a rede pública de ensino do Paraná contará com 82 novas escolas “cívico-militares”. Esse foi o resultado da consulta promovida pelo governo nessa semana, nos dias 28 e 29. Outras 45 instituições rejeitaram a mudança e escolheram permanecer no atual modelo.

Há duas formas relativamente simples de definir a escola cívico-militar. Trata-se de um modelo tão, mas tão bom, que nem Ratinho Jr. aderiu. O governador prefere pagar uma pequena fortuna para manter seus pimpolhos em uma escola de elite cuja proposta, inclusive curricular, contradiz rigorosamente tudo o que preconiza a escola cívico-militar que ele defende para adolescentes paranaenses da rede pública.

Uma segunda definição, igualmente simples: a escola cívico-militar é uma aberração pedagógica e uma perversão ideológica sustentada em uma mentira. Perdão: em uma sequência de mentiras, que vão da suposta segurança e a garantia da disciplina, à propalada e enganosa melhoria nos índices do Ideb, construída à base da exclusão de milhares de estudantes, como demonstrou a jornalista Rosiane de Freitas aqui no Plural.

A escola cívico-militar não é, portanto, um projeto educacional ou pedagógico. Nenhuma entidade, pesquisador ou pesquisadora em educação a avaliza. Ela não apenas inexiste em sistemas educacionais de países democráticos, como vai na contramão do que praticam aqueles com educação considerada exemplar e altos índices de avaliação de desempenho de seus estudantes.

Ela é um projeto ideológico, ironicamente, encampado por quem vive a denunciar a “doutrinação ideológica” nas escolas.

Muita truculência, nenhuma melhoria

Reconheço que não estou falando de nada novo. Afinal, trata-se de um programa gestado no interior de um governo de extrema-direita que passou quatro anos investindo na precarização da educação e da escola, atacando, desqualificando e incentivando a perseguição e a violência contra professoras e professores. Mas me interessa, por outro lado, entender as implicações práticas e políticas do modelo.

Além de um cabide de emprego para militares aposentados, a escola cívico-militar é excludente e autoritária. São inúmeras as denúncias de abusos contra docentes e discentes por militares que, sem nenhuma formação ou qualificação pedagógica, mandam e desmandam nas escolas, transformando-as em extensões de um quartel. E já seria grave se a truculência se resumisse a regras obsoletas sobre o vestuário ou o corte de cabelo, por exemplo. Mas não é apenas isso.

Atividades pedagógicas e conteúdos ministrados são veladamente censurados e docentes constrangidos por ministrarem ou discutirem determinados temas. A sensação, denunciam docentes, é de serem permanentemente vigiados e tratados como inimigos, insisto porque é importante, por quem não tem experiência, treinamento, qualificação e sensibilidade para atuar dentro de uma escola.

Não somente no Paraná, discentes são “enquadrados” por policiais no ambiente escolar, alguns deles conduzidos à Delegacia da Criança e do Adolescente (DCA), não raro, por motivos torpes, como o uso de celulares, desentendimentos entre colegas de sala ou desacato à autoridade – a do professor e, claro, a do policial.

Em situações extremas, estudantes são ameaçados fisicamente e em pelo menos um caso registrado, em uma escola militarizada do Distrito Federal, um militar jogou spray de pimenta em um aluno e o algemou dentro da unidade de ensino após ter sido “insultado” e “desafiado” pelo adolescente.

Não é um equívoco, mas um projeto

E enfim, há uma motivação, um projeto político que atravessa e sustenta a defesa da escola cívico-militar. Originalmente, o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim), apresentado em 2019 pelo inelegível, pretendia ser a solução para escolas cravadas em território de vulnerabilidade social e com baixos índices de avaliação.

Resumidamente, o governo pretendia que o remédio para atender adolescentes em condição vulnerável – econômica, social ou familiar – e de precariedade educacional era entregar a administração e a gestão escolar a militares de pijama, transferindo para eles a responsabilidade por estabelecer normas de convivência e regras disciplinares, além de medidas punitivas.

Há mais em jogo do que o entendimento de que a população vulnerável é um caso para polícia. No Paraná, inclusive, a vulnerabilidade social deixou de ser critério para a inclusão das escolas nas “consultas públicas”. Na dessa semana, o governo praticamente falou sozinho, cerceando por todos os meios ao seu alcance o acesso às escolas de lideranças contrárias à militarização.

Provavelmente fará o mesmo agora: a toque de caixa, talvez para compensar a derrota em algumas comunidades, talvez para atender lideranças políticas bolsonaristas, Ratinho Jr. quer realizar nova consulta pública em outras 25 escolas do estado ainda esse ano. A pressa pode sugerir desarticulação ou mesmo açodamento. Ledo engano.

As escolas – e com elas, docentes e discentes – entraram na mira de Bolsonaro e dos bolsonaristas desde cedo. Os ataques, a desqualificação e a precarização são uma parte apenas do que está em jogo: o aparelhamento das escolas com vistas a desmobilizar sua dimensão pública e política e reduzi-la a uma função meramente instrumental.

As escolas cívico-militares são, nesse sentido, a síntese do projeto de futuro do bolsonarismo: adolescentes com habilidades básicas para responderem provas e estatísticas governamentais, enquanto têm sua subjetividade moldada pela mentalidade e a insensibilidade tacanha e autoritária dos milicos. Nada a estranhar, portanto, que Ratinho Jr. não a queira para seus herdeiros, mas faça questão de que seja essa a escola para outros filhos que não os seus.

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