A quem pertence a memória do Holocausto?

O Holocausto não pertence a um indivíduo ou grupo, tampouco a um governo, e não há ninguém com legitimidade suficiente para ditar como ele deve ser lembrado.

Um colega historiador, Alexandre Avelar, professor na Universidade Federal de Uberlândia (UFU), comentou em sua conta no Facebook, a respeito da repercussão da declaração de Lula em que comparou o Holocausto judeu ao genocídio na Faixa de Gaza, que “a memória sacralizada do Holocausto como o ‘mal absoluto’ sempre foi usada por perpetradores de genocídios como um trunfo para legitimar as próprias atrocidades”. 

A excepcionalidade do Holocausto (prefiro o termo Shoah, mas nesse artigo opto por usar Holocausto, para não acrescentar mais um ingrediente conceitual à discussão) tem servido para “traçar uma ruptura entre a barbárie nazista – irrepetível – e o nosso presente civilizado”. Argumento reiteradamente manipulado para minorar, no limite simplesmente justificar, genocídios que, como a Shoah, deixaram um rastro de destruição e morte. 

Como nenhum evento é comparável ao Holocausto, toda memória traumática será mensurada pela régua de um evento cuja singularidade, em certa medida, minimiza a dimensão trágica de todos os outros. Esse gesto, deliberadamente ou não, subtrai do genocídio judeu sua historicidade para transmutá-lo em algo próximo à esfera do sagrado, aquilo cuja presença pode ser percebida e contemplada, mas não tocada e maculada.  

É em parte também nesse sentido que se valoriza, em relação ao período e suas representações, a memória, talvez mais até que a história. Há, por certo, a escassez do arquivo, fundamental à prática historiográfica, enquanto abundam lembranças e testemunhos da experiência terrífica dos campos.

Mas se uma das características da memória é, justamente, uma espécie de sacralização do acontecimento, a história é um exercício de profanação crítica do passado que, entre outras coisas, procura tensionar as pretensões por vezes totalizantes da memória. É contra a sacralização do Holocausto que recorrem, entre outros, grupos e intelectuais judeus de oposição ao governo extremista de Benjamin Netanyahu.

Na semana passada, a escritora russo-estadunidense Masha Gessen, foi premiada pelo ensaio “In the shadow of the Holocaust”, publicado na edição de dezembro último da “The New Yorker”. Nele, Gessen compara Gaza a um gueto. Mas, ressalta, “não um gueto judeu de Veneza ou um gueto no centro de uma cidade na América, mas um gueto judeu em um país do leste europeu ocupado pela Alemanha nazista”.

Em nota de apoio à declaração de Lula, a Articulação Judaica de Esquerda acusa o primeiro-ministro israelense de perpetrar, na Palestina, uma política de extermínio. Um genocídio, dizem, comparável tanto ao Holocausto judeu sob o nazismo, como ao Apartheid sul-africano. 

Classificando as semelhanças como “insuportáveis, dolorosas e desconfortáveis”, a nota do coletivo afirma, por outro lado, que é impossível não comparar as medidas nazistas “com a situação dos palestinos vivendo há 55 anos em condição apátrida e sob pogroms (avalizados e estimulados pelas autoridades israelenses)”.

Outros holocaustos

Parece tudo um pouco etéreo, mas não é. A proclamada excepcionalidade do Holocausto tem implicações políticas, além de obviamente históricas, bastante significativas. 

Ela colabora, por exemplo, para relativizar a experiência dos “holocaustos coloniais”, na expressão do historiador estadunidense Mike Davis. Em seu livro já clássico, “As origens do totalitarismo”, a filósofa alemã Hannah Arendt já afirmava que nas origens do totalitarismo do século XX estava a expansão imperialista europeia no continente africano, de forte acento racista.

Além de Arendt, toda uma tradição de pensadores africanos ou de origem, de Aimé Césaire e Franz Fanon, até nomes recentes como o de Grada Kilomba e Achille Mbembe, apontam o domínio colonial em África como um grande laboratório de experimentações que desembocariam no extermínio judeu perpetrado pelo nazismo. Antes de ser europeu e branco, dizem, o genocídio baseado em critérios raciais, foi africano e negro. 

É essa, inclusive, uma das críticas de Mbembe a pensadores como o francês Michel Foucault. Para ele, ainda que correto em sua conceituação, Foucault se equivoca ao afirmar que é o nazismo alemão quem faz o parto do que definiu como racismo de Estado, circunscrevendo-o ao início do século XX. 

Para Mbembe, o diagnóstico foucaultiano permanece preso aos limites europeus, ignorando contextos de colonização e neocolonização, como os do século XIX na África. Cito um exemplo: apenas no Congo, sob o domínio de Leopoldo II, calcula-se que 10 milhões foram assassinados e outros milhares mutilados, violentados e escravizados durante as quatro décadas em que o território foi possessão pessoal do monarca belga. 

Isso bastaria para que começássemos a pensar, seriamente, de que talvez o Holocausto judeu não seja um modelo paradigmático e universal de genocídio de povos e populações e dos traumas daí decorrentes. Mas é possível que não estejamos prontos para chamar de holocausto o extermínio da população negra de um país e continente não ocidentais. 

Implicações políticas

Em um nível mais ao rés-do-chão, atacar a declaração de Lula é mais uma manobra da extrema-direita com fins políticos e eleitoreiros. 

Entre os deputados que pedem seu impeachment há de tudo um pouco: tem quem confraternizou com deputada neonazista alemã; disse ser um erro a Alemanha ter criminalizado o nazismo; fez a saudação supremacista no plenário da Câmara e, ainda, quem tergiversa sobre o pai, um negacionista do Holocausto. 

E tem a “conge”, envergonhando seus eleitores paulistas tentando explicar, em um discurso sofrível no plenário da Cãmara, porque Lula deve ser impedido de continuar presidente. 

Boa parte, portanto, está pouco se lixando para a memória do Holocausto ou para um eventual – e bastante improvável – dano que a declaração de Lula possa causar ao Brasil. A propalada crise diplomática só não é exclusivamente interna porque Netanyahu, como esperado, reagiu, considerando Lula “persona non grata” em Israel.

Em uma postagem no X (ex-Twitter), Netanyahu escreveu que as “palavras do presidente do Brasil são vergonhosas e graves. Isso banaliza o Holocausto e prejudica o povo judeu e o direito de Israel de se defender”. São poucos caracteres, mas ele não precisa de mais que isso para mentir. 

As “palavras do presidente do Brasil” não banalizam o Holocausto, tampouco prejudicam o “povo judeu”. Sobre o direito de Israel de se defender, talvez valha a pena lembrar o que disse, ainda em outubro passado, o ministro da Defesa israelense, Yoav Gallant: “Estamos impondo um cerco total a Gaza. Nem eletricidade, nem comida, nem água, nem combustível. Tudo bloqueado. (…) Estamos lutando contra animais e agimos em conformidade”.

Um imperativo ético

Em dezembro de 1948, uma carta assinada por intelectuais judeus, entre eles Albert Einstein e a já mencionada Hannah Arendt, foi enviada ao The New York Times.

Seus signatários alertavam para a visita, aos EUA, de Menachem Begin, líder do Herut, “um partido político muito próximo, em organização, métodos, filosofia política e apelo social aos partidos Nazistas e Fascistas”. Begin se tornaria, no começo da década de 1970, primeiro-ministro de Israel e o Herut, uma das agremiações que daria origem ao Likud, legenda de extrema-direita onde milita Benjamin Netanyahu.

A Netanyahu, portanto, também interessa desviar a atenção para Lula, transformando-o em bode expiatório quando, mesmo aliados incondicionais como os EUA, não exatamente condenam abertamente o genocídio palestino, mas insinuam mudar o discurso e relativizar o apoio, até aqui irrestrito, a Israel, e a falam em um cessar-fogo.

Ele precisa da “guerra”, porque a condição para sua sobrevivência política reside na possibilidade de continuar justificando sua limpeza étnica. E ao falar em nome de todos os judeus, honra suas origens políticas recorrendo a um artifício fascista, o de se apresentar como personificação de um “povo”, diluindo todo conflito e pluralidade em uma pretensa coesão e homogeneidade, na prática, inexistentes.

Encerro retornando ao argumento inicial. Se a comunidade judaica é plural e diversa, e não uma entidade una e coesa, mesmo a memória da tragédia enseja apropriações e experiências coesas diversas. O Holocausto não pertence a um indivíduo ou grupo, tampouco a um governo, e não há ninguém com legitimidade suficiente para ditar como ele deve ser lembrado. Certamente não Benjamin Netanyahu. 

Um outro pensador alemão e judeu, Theodor Adorno, escreveu nos anos de 1960 que as condições que engendraram o fascismo permaneciam vivas e atuantes na Alemanha do pós-guerra. Para evitar a repetição do horror e da tragédia, ele reivindicava um “lembrar ativo”, em tudo distinto da memória monumental pretendida pelos que acreditam na excepcionalidade sagrada do Holocausto. 

Lula não banalizou o Holocausto ao compará-lo a Gaza. Mas chamou a atenção para a importância de condenarmos os genocídios de hoje com a mesma veemência com que acusamos o genocídio judeu pela Alemanha nazista. É um imperativo ético defender populações vulneráveis contra políticas e práticas genocidas, seja a ocupação da Palestina por Israel ou a morte de brasileiras e brasileiros pelas políticas irresponsáveis de Bolsonaro durante a pandemia. 

Honrar a memória do Holocausto é lutar para que ele não se repita, em nenhum tempo e lugar e contra nenhum povo. Não deve haver espaço, hoje, para novos campos e guetos. Nem tolerância para perpetradores.

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