Eu sou negro e não sabia

Ser preto no Brasil inclui ser humilhado. O privilégio me impediu de ver quem eu era

Eu sou negro, mas demorei para perceber isso. Sempre tive espelhos à disposição, mas não entendia que os lábios grossos, o cabelo quase pixaim e a pele alguns tons mais escura do que quase todo mundo na escola diziam alguma coisa.

Não era burrice. Era falta de consciência. Mas era também mais uma coisa: para eu me sentir negro me faltava a pobreza abjeta, me faltava a fome, me faltava o desrespeito dos outros. No Brasil, a gente não se sente preto se tem o que comer, se é bem tratado, se tem como estudar em escola paga.

Meus pais são ambos de famílias miscigenadas. Como não somos Alencastro Guimarães, como não somos quatrocentões, não tenho ideia de onde vieram meus bisavós. Não há um brasão de família que mostre meus antepassados num culto afro em Gana, ou sei lá em que outro lugar dos tantos que não aprendi nas aulas de geografia.

Negro de classe média existe. Na minha turma de colégio tinha uma. Acho que vocês também devem ter visto por aí um ou outro negro não condenado à periferia. Acho que é deles que muita gente fala quando diz que até tem amigos pretos.

(Mentira, ninguém diz “preto”, tem medo de ser ofensa – a única deferÊncia demonstrada é a prova maior do equívoco. Me faz lembrar uma comédia em que o chefe do escritório, no dia da diversidade, pergunta ao mexicano se pode chamá-lo de mexicano ou se existe outro jeito menos ofensivo).

Com o tempo, fui percebendo que sou uma grande mescla. Sou pardo. E em grande medida, sou negro. Por algum fator esquisito, nunca o mundo me jogou isso na cara. Tive três refeições por dia, passei no vestibular antes das cotas porque pude estudar num cursinho bom. Casei com uma mulher branca de olhos verdes.

E se não fosse o mundo (as pessoas, os livros, o tempo) ter me cutucado e aberto meus olhos, eu ia achar pelo resto da vida que era branco. Porque em termos socioeconômicos, sou.

Existe uma história famosa de um jogador, Róbson, que comentava do racismo no futebol. Ele já estava bem de vida e teria dito: “Já fui preto, eu sei o que é isso”.

Eu sou negro, mas nunca soube o que é ser preto no Brasil.

Ser preto no Brasil é ouvir o tempo todo que você é inferior, de jeitos mais sutis ou mais abertos. É se acostumar com isso a ponto de nem achar estranho, e de achar que é verdade.

Ser preto no Brasil é ser vigiado em lojas, é levar batida da polícia sem ter por que, é ouvir que você está de exagero quando reclama disso.

Ser preto no Brasil é não ter sido presidente, não se ver no Congresso nem no Judiciário. É aparecer na foto do governador só uma vez por ano, no Dia da Consciência Negra.

Ser preto é morrer espancado no mercado e dizerem que não foi racismo.

Ser preto no Brasil é ter antepassados que apanharam, verteram sangue, foram propriedade, mas descobrir que tua cidade não pode parar um dia para refletir sobre isso – porque isso prejudicaria os donos de shopping, todos necessariamente brancos.

Ser preto no Brasil é eleger alguém finalmente como você e ouvir que isso não pode ser comemorado porque é racismo.

Ser preto é acharem que você usa droga, que é ladrão, é a quase certeza de que teus pais têm empregos ruins onde são tratados como pessoas de segunda classe – e imaginar que dificilmente isso vai ser diferente para teus filhos.

Ser preto no Brasil é ser o último degrau, é servir de consolo para quem está no fundo do polo mas tem a pele branca e pode pensar: pelo menos eu não sou ele.

Ser preto no Brasil é abaixo do fundo do poço. Do fundo do poço você tem mais chance de subir.

E por isso eu demorei pra perceber quem eu sou. De onde eu vim. Porque em algum momento duas ou três pessoas escaparam disso e conseguiram que meus pais, meu irmão e eu pudéssemos ver tudo isso meio de fora, mesmo pertencendo ao mesmo mundo.

Mas hoje eu sei o que sou. E não vou deixar passar sem responder as barbaridades que se dizem sobre não haver racismo no Brasil. Porque quem diz isso está apenas perpetuando a dor – e ela já durou tempo demais.

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