Bolsonaro e o bolsonarismo depois de domingo

O presidente é um desqualificado, mas mesmo um desclassificado pode pensar estrategicamente

Em artigo publicado nos dias seguintes às eleições norte americanas, a cientista política Wendy Brown chamava a atenção para o fato de que, apesar de derrotado, o agora quase ex-presidente saiu do pleito com uma margem de votos significativamente superior aquela que obteve em 2016. Em quatro anos, Trump conseguiu, inclusive, recrutar apoios entre as comunidades negras, latinas e jovens brancos, tradicionalmente eleitores Democratas, passando dos 63 da última eleição, para os mais de 70 milhões de agora.

Há inúmeras explicações para esse fenômeno, ainda de acordo com Brown, que não pode ser resumido à difusão de fake news pelos grupos de WhatsApp ou à capacidade prodigiosa de Trump no manejo de sua conta no Twitter. Mas uma das coisas que se pode concluir do texto de Brown é que, se Trump perdeu, o “trumpismo”, não necessariamente.

Tampouco a derrota eleitoral significa a retirada, da cena política estadunidense, se não exatamente do agora quase ex-presidente, das ideias, valores e estratégias que ele defende e representa. O argumento de Wendy Brown é que o aumento na votação de Trump repercute, mais que simplesmente uma escolha pontual e imediata, a adesão, ao menos de parte do eleitorado, aos valores e ao programa da extrema-direita que, nesse sentido e paradoxalmente, saiu da eleição derrotada, mas fortalecida.

Começo com esse breve comentário sobre os EUA para tentar um paralelo com as eleições municipais brasileiras do final de semana. E acho que não forço a mão ao fazê-lo. Não apenas porque não poucos analistas enfatizaram, nos últimos meses, que o resultado do pleito estadunidense impacta diretamente na política brasileira, em função principalmente da subserviência política, disfarçada de aliança, de Bolsonaro.

Mas também porque, de modo algo semelhante, se Bolsonaro sofreu uma derrota eleitoral no último domingo, nem por isso o resultado das urnas deve ser lido, de maneira otimista, como indicativo de um enfraquecimento do bolsonarismo. É verdade que a maioria dos candidatos apoiados pelo presidente perdeu. Celso Russomano, em São Paulo, encerra sua terceira tentativa de governar a maior cidade do país com apenas alguns pontos percentuais à frente de um blogueiro com complexo de Édipo mal resolvido.

Não foi o único a descobrir que o presidente não é um bom cabo eleitoral. Principalmente em um ano em que amargamos os piores indicadores econômicos dos últimos tempos, e contabilizamos a espantosa soma de quase 170 mil mortos, vítimas de uma pandemia que o macho Bolsonaro, presidente de um país de “maricas”, insiste em negar.

Por outro lado, não vejo nessa derrota indícios de que o presidente sai do pleito enfraquecido. Nem mesmo do ponto de vista institucional: entre os partidos que mais cresceram em número de prefeituras conquistadas, estão DEM, PP e PSD, justamente os que compõem o chamado “centrão”, com quem Bolsonaro negocia (passe o eufemismo) desde há alguns meses a “governabilidade”. O MDB, sempre governista não importa quem esteja no governo, segue sendo quem mais administra cidades país afora, quase 800 municípios.

O que isso significa? Algumas coisas.

Naturalizamos de tal forma o fato de que somos governados por um desqualificado, que esquecemos que mesmo um desclassificado consegue pensar estrategicamente – ou, o que parece ser o caso, de cercar-se de quem é capaz de fazê-lo. Depois de romper e dividir o PSL; minar sua base de apoio no Congresso; romper com aliados estratégicos, como Doria e Witzel; acompanhar dois deles serem destituídos de suas funções – o governador catarinense Carlos Moisés e o próprio Witzel –; e ver sua família e amigos mais próximos estamparem as manchetes policiais, Bolsonaro sabia que precisava reagrupar as forças políticas em busca de sustentação.

A decisão de negociar com a clientela habitual no Congresso, ao invés de apostar no apoio orgânico das lideranças e partidos que o elegeram, mostrou-se aparentemente acertada, mais até, depois de domingo, do que o próprio Bolsonaro imaginou. Porque com os partidos vitoriosos nas eleições municipais embarcando no governo, ao menos em tese, o presidente amplia sua capilaridade e inserção entre o eleitorado, nem que para isso precise recuar, momentaneamente, no ímpeto autoritário e golpista.

Nesse sentido, mais que um desgaste do bolsonarismo, o que parece estar a surgir seja um novo arranjo político-partidário, formado pela aproximação entre o núcleo duro da extrema-direita e a chamada “direita tradicional”, com o DEM desempenhando, no governo Bolsonaro, o papel que coube ao MDB nos governos petistas. Se é evidente que 2022 é o limite (ou talvez não), ainda é cedo para saber se a aproximação vai virar aliança e, se for o caso, se a aliança se sustenta até as eleições presidenciais.

Porque o expediente esbarra, principalmente, em um problema, que é a própria estratégia do bolsonarismo, desenhada desde a campanha, em 2018: recusar, publicamente, o diálogo e o equilíbrio com as demais instituições e poderes da República, condição para sustentar o discurso de um governo e um presidente anti-sistêmicos e sua cruzada contra as forças que pretendem constrangê-lo.

Sabemos que é tudo fake, mas a encenação mentirosa é o que, fundamentalmente, assegura a fidelidade de uma parcela nada desprezível do eleitorado a Bolsonaro. Se manter a mise-en-scène for condição da aliança, é possível que os quase novos aliados de agora, não se sintam confortáveis em frequentar um governo que faz de conta que não os respeita para agradar o eleitorado.

E desembarcar do bolsonarismo não será tarefa difícil para o centrão, principalmente se funcionarem as tentativas recentes de ungir, como “centro”, a direita que ajudou a eleger e construir o governo Bolsonaro e, traída, agora finge arrependimento.

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