Os deuses do Olimpo

Tudo bem valorizar o imprevisto numa viagem, mas lembre que não se trata nem de uma tarefa escolar nem de um passaporte que garanta a sabedoria

Lendo blogs e livros de viagem, há um mantra repetido à exaustão: o melhor da viagem é o imprevisto. Alguns dizem que o imprevisto tem até função edificante: aprendendo com as dificuldades da viagem, lidamos melhor com as dificuldades da vida. Não sou muito fã de aplicar teorias edificantes quando viajamos. Aliás, não só em viagens, costumo ver qualquer mensagem edificante com desconfiança. Vamos mais tateando e tropeçando com a vida do que progredindo em linha reta.

A ideia de uma sabedoria que viria com uma alma viajada e envelhecida — como no imaginário popular de um velhinho sábio que conta histórias de valor moral para os netos — pode ser contrastada com a multidão de velhos teimosos, rabugentos e medíocres que todos podemos ser um dia. A velhice e as viagens não são garantia de nada. A bem da verdade, figuras desagradáveis, viajadas ou não, só tendem a piorar com a idade.

Não que não se possa aprender algo sobre o mundo viajando. Um provérbio ganês diz o seguinte: “o homem que nunca foi a lugar nenhum acha que a sopa de sua mãe é a melhor”. É claro que a viagem expande aquilo que conhecemos da vida e do mundo. No entanto, um livro pode ser mais revelador e profundo sobre as sutilezas de uma cultura do que uma viagem turística de alguns poucos dias. E os perrengues que eventualmente enfrentamos na viagem geralmente não são nada comparados com os perrengues da sobrevivência diária da grande maioria das pessoas. Viajamos em busca da novidade, da contemplação, de sentir na pele um outro sabor. Valorizamos o imprevisto, mas não é nem uma tarefa escolar nem um passaporte que garanta a sabedoria.

Quando tudo deu errado nas minhas viagens, só queria desaparecer e voltar para casa, voltar para a segurança dos imprevistos catalogados pela civilização, preferencialmente protegidos pelo celular com Internet, pelo chuveiro com água quente e uma cama confortável. Como sabemos, depois de um tempo, tudo vira história e, olhando para trás, a lástima vira comédia e é assunto infalível para rirmos de nós mesmos, o que é sempre uma boa ideia. Porém, no momento da desgraça, quando, por exemplo, fiquei preso acidentalmente trancado sozinho em um banheiro de uma terma andina, gritando por socorro e ajuda no meio da imundície e do cheiro de merda, é mais fácil pensar que a vida simplesmente não vale a pena.

Toda viagem tem imprevistos. O planejamento é o esforço da razão para impedir o caos. Organizar, medir, mapear, contar, classificar. Quadro de distâncias, revisões, checklists e antecipações. Tentar ser senhor do destino. Faz parte da mitologia humana e nunca se acreditou tanto neste mito como agora. Na antiguidade era um tanto diferente, porque quando a vida saía fora da curva, havia também algum deus do Olimpo para se pôr a culpa. A partir da modernidade, o peso da responsabilidade ficou mais para os nossos ombros e quando nada dá certo é porque falhamos – toda a literatura de autoajuda parte desta premissa.

Mas é preciso combinar com os projetos dos outros e com o humor daquilo que não se controla para que a ideia de comando da própria vida faça algum sentido. E quem se culpa pelo imprevisto não aproveita a paisagem: viajar tem lá sua cota saudável de irresponsabilidade.

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