Gente como a gente

É um erro avaliar um país somente pelas notícias

“O senhor é professor?”, perguntou o artesão de Avanos. Ele aparentava ter mais de 70, era magro, estava sem camisa e cheio de energia – o corpo estava na mente errada, porque eu estava conversando com um jovem animadíssimo. Afirmei que sim, professor, o que fez com ele abrisse um largo sorriso e saísse correndo pelo ateliê, aos gritos, chamando pelo filho.

Avanos é uma pequena cidade da Capadócia, no coração da Turquia. Ainda que seja uma região turística, é bem menos visitada que Göreme, vilarejo vizinho onde fica a base para os famosos passeios de balão. Em geral, os pacotes para a Capadócia são de final de semana. Os turistas estão interessados mesmo é no passeio de balão, que é de fato espetacular, mas acabam negligenciando a milenar cultura local. Como eu havia reservado uma semana para a Capadócia – o que absolutamente ninguém mais faz, me garantiu o dono da pousada em que fiquei hospedado –, tive a chance de explorar tudo com muito mais calma que o habitual.

O filho do artesão, um moço corpulento, alto, barbado, com seus quarenta e tantos anos – a mesma idade que eu tinha na época – chegou animado. “Eu também sou professor”, disse ele, abrindo um largo sorriso.

Foto: André Tezza

Gostamos de dizer que viajamos para outros países para conhecer outras culturas. Mas, paradoxalmente, hoje ficou mais difícil de ter a chance de conversar com estrangeiros. Vivemos a época da digitalização da vida – o que significa uma diminuição drástica dos contatos face a face. Não precisamos mais parar para perguntar onde fica um museu, qual a estrada correta, qual o prato típico que é obrigatório conhecermos. Como todos sabemos bem, as respostas estão nas telas dos nossos celulares.

Estes dias, conversando com um primo que também gosta muito de viajar, ele me explicava que houve uma mudança drástica nos hostels. Antigamente, hospedar-se em um hostel, além de ser muito mais em conta que um hotel tradicional, era também a oportunidade de conhecer pessoas de todos os cantos do mundo. Mais do que isso: hostels eram locais famosos para paquerar. Claro, paquera de poucos dias, às vezes de poucas horas – era o que acontecia no tempo de fazer uma receita na cozinha compartilhada com todos os hóspedes –, mas ainda assim, uma chance valiosa de encontrar estrangeiros. Tudo mudou: nas cozinhas e nos salões dos hostels, agora a norma é ficar mergulhado nas telas, com chance mínima para dar atenção aos demais que estão diante de nós.

Foto: André Tezza

A conversa com o filho do artesão durou pouco mais de uma hora. Ele me explicou que o artesanato em barro era uma tradição de dois mil anos e que normalmente estava a cargo dos homens, como o pai dele. Já a tapeçaria, igualmente milenar, era uma atividade típica das mulheres. Enquanto ouvia as explicações, o pai me mostrava orgulhoso diversas peças em barro do ateliê. Elas eram pequenas e, por isso mesmo, tecnicamente muito mais difíceis de serem produzidas. Depois que comprei um par de peças, conversamos sobre o ensino, as dificuldades em ser professor no Brasil e na Turquia, como eram as nossas impressões das novas gerações, enfim, o papo típico com alguém que tinha a mesma profissão que a minha.

A conversa fluía animada, em inglês, e então o filho do artesão me convidou para irmos tomar uma cerveja. Apesar de ele insistir muito e de realmente estarmos com aquela sensação gostosa de encontrar alguém com quem temos muita facilidade para trocar ideias (o primeiro passo para a construção de uma amizade sólida), eu precisei recusar. Estava com carro alugado, fiquei com medo de dirigir alcoolizado até a minha pousada, que ficava em Uçhisar, um outro vilarejo, a mais de 10 km de distância. Hoje, me arrependo profundamente da decisão – eu poderia ter pegado um Uber. Isso se o professor não me convidasse para dormir na casa dele, porque os turcos são de uma hospitalidade incomparável.

Antes de partir, ele me fez uma última pergunta, “o que você imaginava que era a Turquia é muito diferente do que você está vendo aqui?”. Era a terceira vez que eu ouvia a pergunta. Os turcos com quem conversava estavam encucados com a imagem do país, talvez receosos do impacto da era Erdogan, que tinha tirado o país dos trilhos da modernidade laica.

Foto: André Tezza

O jornalismo mostra aquilo que é noticiável, o que é surpreendente, o novo, mas quase nunca o cheiro diário da cultura. E as notícias da Turquia que nos chegam, há mais de uma década, só exibem o esgarçamento da política. No entanto, a Turquia que eu experimentava não era de modo algum um lugar que só poderia ser interpretado pelo tensionamento a céu aberto.

A Turquia que eu vivenciava era aquela que eu havia conhecido pela literatura de Pamuk, em que a diversidade turca é apresentada não só nos conflitos, mas também na delicadeza e na poesia dos encontros. É um erro avaliar um país somente por aquilo que é noticiável. E, sem os encontros, é impossível conhecer uma cultura.

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