Enfim, o Alasca

Sem iglus, a natureza selvagem tem Walmart e asfalto com pista dupla

Depois de alguns dias na província de Yukon, ainda no lado canadense da Alasca Highway, chegamos em Dawson City. Para chegar lá, é preciso fazer um desvio da rodovia principal e entrar na Klondike Highway. Dawson City é uma pequena joia. A cidade fez parte do frenesi da corrida do ouro, na virada do século XIX para o XX, durante pouquíssimos anos. Mas, diferentemente das demais, Dawson City não só preservou a arquitetura original, como exigiu que as novas construções seguissem o modelo antigo. O resultado é surpreendente – parece que estamos em um set de filme de faroeste. Hoje Dawson vive do turismo e de tudo o que vimos no extremo noroeste do continente, esta é disparada a cidade mais interessante.

Descobri Dawson City não pelos vlogs de viagem, mas por meio de guias da Lonely Planet e, sobretudo, o sensacional “The Milepost – Alaska Travel Planner”, que em 2023 completou 75 anos de existência. É um guia impresso, no estilo do antigo guia quatro rodas, com mais de 100 mapas e informações sobre condições das rodovias, postos de gasolina, hospitais, hotéis, restaurantes e a cultura de toda a região noroeste do Canadá e Alasca. Como um guia impresso ainda consegue existir em tempos de Internet? Boa parte do Yukon e do Alasca ainda não tem sinal de celular – ter um guia com mapas detalhados é até uma questão de segurança. Mas, mais do que isso, como todos os bons guias, o Milepost é uma ferramenta excelente para o planejamento de viagem. Diferentemente da Internet, a informação está toda em um único lugar, bem organizada e com excelente curadoria – o trabalho de jornalistas profissionais ainda faz muita diferença.

Dawson City, nossa porta de entrada para

A partir de Dawson City, fizemos a fronteira em Poker Creek, um lugar bastante remoto. Quando chegamos para carimbar os passaportes, havia um cartaz no lado americano da fronteira dizendo “Sim, nós moramos aqui. Sim, é legal morar aqui”. São as respostas para as duas perguntas que os oficiais da fronteira escutam todos os dias. O carimbo no passaporte tem o desenho de um Caribu – é o carimbo de passaporte mais bonito da minha vida de viajante, com certeza.

Passaporte com a estampa de um caribu na fronteira de Poker Creek

Enfim, o Alasca. Tiramos as fotos clássicas na frente das placas de boas-vindas (há fotos que são inevitáveis) e entramos novamente em território americano. Esqueça a imagem de esquimós pescando em um buraco de gelo dentro de um iglu. A verdade é que, diferentemente do que já foi, o Alasca não é mais uma região remota e inóspita. Muito mais estruturado que a província canadense do Yukon, o Alasca tem as principais rodovias asfaltadas, algumas com pista dupla, e cidades como Fairbanks e Anchorage contam com as redes dos grandes varejistas dos EUA. Por este lado, o Alasca é decepcionante – a natureza selvagem, aquela do filme e do livro, até existe, mas alguns dos principais pontos de interesse são hoje regiões com turismo estruturado.

Algumas fotos são inevitáveis

Nossa jornada alasquiana teve três grandes destinos: o Parque Nacional Denali, Homer e Seward. O Denali é um dos parques nacionais mais importantes dos EUA. Assim como o Grand Canyon, a infraestrutura para quem vai acampar é privilegiada e há muitas trilhas possíveis. Não conseguimos vaga para os campings que ficam nas regiões mais remotas do parque – onde a vida selvagem é abundante – e por isso precisamos pagar um tour guiado para conhecer o melhor do Denali. Ali, de fato, vimos muita vida selvagem: caribus, alces, cabras da montanha, porco-espinho e ursos. Na parte dos ursos, o destaque foi uma mamãe urso com seus trigêmeos bebês, o que é muito raro – o nosso guia, que mora na região há trinta anos, comentou que foi a segunda vez que ele presenciou trigêmeos.

Infinitos tons de verde dos fiordes da Península do Kenai

Em Seward, fizemos o cruzeiro de um dia pelos fiordes do Parque Nacional do Kenai – é uma atração clássica, muito turística, mas imperdível. Às vezes o que atrai as multidões não é o irrelevante, mas o indispensável – como os afrescos da Capela Sistina. Os fiordes são majestosos e as cores do mar podem ter infinitos tons de verde. Novamente, avistamos muita vida selvagem. Uma das melhores partes do passeio foi o capitão do barco. Havia alto-falantes espalhados pela embarcação em que ouvíamos a sua voz elegante (pense no timbre do Morgan Freeman), contando as belezas e as histórias da península do Kenai. Quase no fim do passeio, o capitão leu uma poesia da própria lavra – foi surpreendente e bonito.

Filhotes de urso pardo no Parque Nacional Lake Clark

Por fim, Homer. Lá entramos em uma aventura diferente. Pegamos um teco-teco e entramos em um outro Parque Nacional, o Lake Clark. Só a viagem do monomotor já foi espetacular, passando por montanhas nevadas, geleiras e rios. A capa do “Gênesis”, o livro do Sebastião Salgado, é de um outro parque do Alasca – muito parecido com o Lake Clark. Pousamos não em um aeroporto, mas no meio de uma praia absolutamente isolada. Ou melhor: quase totalmente isolada. Um senhor, que herdou terras de seu avô, vive ali sozinho, em uma casa cheia de geradores e painéis solares. Como o patrimônio foi feito antes da região se transformar em parque nacional, a casa e o senhor resistem ali. O guia da nossa expedição, A.J., o jovem piloto do teco-teco, nos explicou que às vezes o senhor sai da casa bradando contra as pessoas que chegam de avião para conhecer o parque. Nós não vimos o personagem, mas eis uma história comum do Alasca: a região atrai as pessoas que querem se isolar do mundo. Como estas pessoas são uma multidão, hoje o Alasca tem Walmart e McDonald’s. No Lake Clark, novamente chegamos próximos dos ursos. O lugar era absurdamente lindo e presenciar os bichos caçando e cuidando dos filhotes foi um grande privilégio.

Vista aérea do Parque Nacional Lake Clark

Quando começamos a voltar para o Canadá, reencontramos um alemão que estava no Denali e agora acampava próximo da Alasca Highway. Era uma incrível coincidência, paramos para conversar. Ralph Thomas é um overlander. Viaja há anos sozinho, em um Toyota com placa da Dinamarca. Em 2019, ele atravessou a América do Sul e, em 2020, estava prestes a entrar no Brasil quando a covid chegou. Depois de algumas frases trocadas, ele nos disse baixinho: a América do Sul é mais interessante que o Alasca. A tundra, os lagos, os fiordes – ele não viu muita novidade do Alasca com o norte da Europa. Mas a América do Sul é diferente. A natureza é muito mais diversificada e, sobretudo, a cultura é infinitamente mais rica.

Para nós, que não estamos acostumados com vales nevados, a beleza alasquiana seguramente não é mais do mesmo – vale a pena vir até aqui. Mas pelo lado da arte e da cultura, a América Latina é de fato muito mais impressionante.

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